terça-feira, agosto 17, 2004

O futuro incerto da Venezuela

Se Caracas,
tivesse estabelecido
um governo simples
como requeria sua
situação política e militar,
tu existirias, ó Venezuela,
e gozarias hoje de tua liberdade.

Simón Bolivar,
em “Manifesto de Cartagena”, 1812.


Em seu famoso discurso pronunciado na instalação do Congresso de Angostura, na Venezuela, em 15 de fevereiro de 1819, Simón Bolivar, o “Libertador”, perguntou-se sobre seu período a frente do governo daquele país: “A época da república, que presidi, não foi uma mera tempestade política, nem uma guerra sangrenta, nem uma anarquia popular, mas o desenrolar de todos os elementos desorganizadores; foi a inundação de uma torrente infernal que submergiu a terra da Venezuela. Um homem – e um homem como eu! -, que diques poderia contrapor ao ímpeto dessas devastações?”.

Pois não causaria espanto ao “Libertador” verificar que atualmente a Venezuela está dividida em lados irreconciliáveis, que foram às urnas neste domingo, 15 de agosto, para sacrificar o mandato de um homem eleito pelo voto direto de seus cidadãos, do Presidente Hugo Rafael Chávez Frias, comandante da denominada “Revolução Bolivariana”, grande admirador e fiel discípulo de Simón Bolivar.

Desde sua independência, Venezuela teve vinte e seis Constituições e dezenove Atos constitucionais, o que por si só já demonstra a instabilidade político-institucional do país. Na sua primeira Carta Constitucional, de 1811 - uma das primeiras constituições da América Latina -, já se destacavam características que perseguiriam a história constitucional venezuelana, como a forma federal, o bicameralismo (apesar do Senado haver sido eliminado com a Constituição de 1999) e um forte Poder Executivo. Em 31 de outubro de 1958 foi firmado o “Pacto de Punto Fijo”, o acordo entre os principais partidos políticos do país que fixou as bases da democracia venezuelana contemporânea, e que durou praticamente até o final da década de 1990, período em que a Venezuela ficou conhecida como a democracia mais estável da região.

O bipartidismo imperou na Venezuela até a vitória de Hugo Chávez nas eleições de 1998, sendo que o poder de fato estava nas mãos de dois ex-presidentes: Carlos Andrés Pérez, da Aliança Democrática – AD (social democrata), e Rafael Caldera, do Comitê de Organização Política dos Eleitores Independentes – COPEI (democrata cristão).

Outro elemento importante da política venezuelana é o petróleo, que dominou a economia venezuelana durante todo o século XX, sendo a oscilação do seu preço um importante fator de instabilidade econômica e, por conseqüência, política no país. A industria petrolífera venezuelana foi nacionalizada em 1976, na época do primeiro governo do presidente Carlos Andrés Pérez (1974-1979, período denominado os “anos sauditas”), que levou o país a um protagonismo econômico na esfera latino-americana, repercutindo nos esforços levados a cabo pelo país na formação de blocos de integração regional, tais como o Pacto Andino e o Sistema Econômico Latino-americano – SELA. A Venezuela é atualmente o quinto maior produtor de petróleo do mundo.

Hugo Chávez, militar ex-golpista, sobe ao poder com um discurso nacionalista e anti-corrupção na denominada “Revolução Bolivariana”, vencendo um total de sete eleições (num país onde o voto não é obrigatório), no intervalo de 1998 a 2000: presidencial (com 56,6% de maioria), o referendo constituinte, a eleição dos constituintes, o referendo da Constituição de 1999, as eleições parlamentares, as proporcionais e por fim a eleição presidencial que o reconduziu à presidência. Desde fevereiro de 1999, quando assume o poder, até a tentativa de golpe de 11 de abril de 2002, que o deixou por quase 48 horas longe da presidência, Hugo Chávez implantou diversas reformas profundas na Venezuela.

No referendo revogatório de domingo passado, o primeiro da historia da Venezuela, está em jogo o mandato do Presidente Hugo Chávez, que pela atual Constituição durará até 2007. Para revogá-lo, a oposição necessita de maioria simples de votos para a opção “sim”, ou a quantidade votos superiores aos 3.757.763 votos dados ao Presidente na reeleição de julho de 2000. Caso perda seu mandato, o Presidente Chávez verá subir à presidência a seu vice, José Vicente Rangel - estreitamente ligado ao chavismo - , por um período de até 30 dias, enquanto o Conselho Nacional Eleitoral – CNE (composto por cinco membros, sendo três de perfil chavista e dois de oposição) convocará novas eleições presidenciais.

Como bem expressou o Professor de Ciência Política da Fundação Getúlio Vargas, Octávio Amorim Neto, o futuro da Venezuela é totalmente incerto: “Ou seja, a futuro da Venezuela se encontra completamente em aberto e imprevisível. Uma vez realizado o plebiscito, o país poderá marchar para um renascimento democrático, para uma guerra civil ou para um regime autoritário. A OEA e o grupo de amigos da Venezuela, liderado pelo Brasil, terão um papel de suma importância na mediação dos conflitos que certamente emergirão depois de hoje”.

Por causa do referendo revogatório, ao redor de 3,5 milhões de venezuelanos se integraram às listas eleitorais, perfazendo um total de mais de 14 milhões de eleitores (sem contar os mais de 50 mil eleitores que vivem no exterior) aptos a votar no domingo, 15 de agosto de 2004.

As forças armadas, que muitas vezes deram a última palavra sobre quem presidiria a Venezuela, já se manifestaram através do seu comandante-em-chefe, o general Raúl Isaías Baduel, que seja qual for o resultado do referendo “atuarão para sufocar quaisquer tentativas de violência”, afastando qualquer possibilidade de golpe militar no país. Entretanto, no último día 12 de agosto, afirmou em tom de pergunta o Presidente Chávez: "¿Cree alguien que los dignos militares venezolanos (...) van a quedarse en los cuarteles de brazos cruzados o en sus casas de brazos cruzados a esperar que vengan los nuevos jefes militares, los golpistas, de ministros de la Defensa y jefes militares? No lo aceptarían, los conozco".

Tanto o Comandante-em-Chefe do exército venezuelano, general Raúl Isaías Baduel, quanto o Ministro da Defesa, general Jorge Luis García, atuaram na resistência e resgate do Presidente Hugo Chávez quando da tentativa de golpe de 11 de abril de 2002. De maneira que todos os postos de mando importantes nas forças armadas estão nas mãos de militares que resistiram à presidência de quase 48 horas do empresário Pedro Carmona.

De acordo com o art. 72 da Constituição Bolivariana de Venezuela é possível revogar o mandato presidencial, tendo sido cumprido a metade do seu período e mediante apresentação de 2,4 milhões de assinaturas. É a figura constitucional do “referendo revogatório”, introduzido no mundo constitucional da América Latina pela Carta venezuelana de 1999. A pergunta feita no último domingo aos venezuelanos foi: “Está você de acordo com deixar sem efeito o mandato popular outorgado mediante eleições democráticas legítimas ao cidadão Hugo Rafael Chávez Frías como presidente da República Bolivariana de Venezuela para o atual período presidencial? ("¿Está usted de acuerdo con dejar sin efecto el mandato popular otorgado mediante elecciones democráticas legítimas al ciudadano Hugo Rafael Chávez Frías como presidente de la República Bolivariana de Venezuela para el actual periodo presidencial?").

A presença de quase 180 observadores internacionais, dentre eles presidentes de tribunais eleitorais latino-americanos, da Organização dos Estados Americanos – OEA e do próprio ex-Presidente dos EUA Jimmy Carter, presidente do Centro Carter, vão garantir a lisura do sufrágio venezuelano.

A aumento no preço do petróleo ajudou a fragilizada economia venezuelana, e o governo não poupou gastos com o assistencialismo das camadas más pobres da população, através das denominadas “missiones”, encarregadas de atender às necessidades básicas desta população carente que ocupa as favelas ao redor de Caracas e outras cidades do país. Esse é o voto que deu a vitória neste domingo a Hugo Chávez, e que o manterá no poder até janeiro de 2007, a contragosto das classes média e alta.

Por outro lado, o resultado do referendo de domingo afeta diretamente a Cuba. Fidel Castro mandou a Venezuela mais de 13 mil médicos, que cuidam gratuitamente da população pobre do país, e vivem nas favelas das grandes cidades. Em retribuição, Chávez envia a preços vantajosos um terço do petróleo consumido em Cuba, que corresponde a 53 mil barrís de petróleo ao dia.

No final daquele discurso de 1819, Bolivar pediu ao Congresso venezuelano que se instalava: “Dignai-vos conceder à Venezuela um governo eminentemente popular, eminentemente justo, eminentemente moral, que domine a opressão, a anarquia e a culpa. Um governo que faça reinar a inocência, a humanidade e a paz. Um governo que faça triunfar, sob o império de leis inexoráveis, a igualdade e a liberdade”. Nada mais atual.