terça-feira, novembro 30, 2004

A raposa e a rainha



Que a Inglaterra é um país repleto de tradições e excentricidades todo mundo está cansado de saber. A pompa e fleuma britânica despertam o desprezo e a inveja de muitos. Algumas tradições inglesas, como a caça à raposa com cães, existem a mais de trezentos anos. A Rainha da Inglaterra caça e esta prática se estende por toda a família real britânica.

Por tudo isso, a Inglaterra vive nos últimos meses um debate incompreensível para o restante do planeta, imerso em questões bem mais terrenas como a subida do preço do petróleo, a guerra do Iraque e a reeleição do Presidente Bush. O debate sobre a entrada em vigor em fevereiro de 2005 de uma lei proposta pelo Partido Trabalhista, do primeiro-ministro Tony Blair, proibindo definitivamente a caça à raposa com cães, além de outros animais silvestres. Blair trava uma cruzada pelo politicamente correto em matéria de defesa dos animais, tendo recentemente chegado ao absurdo de inaugurar, no centro de Londres, um monumento aos animais mortos em guerras.

A polêmica sobre a caça à raposa com cães possui diversos matizes, desde cada posição ocupada pelos interessados. As primeiras tentativas de proibição da caça à raposa são de 1949 e nos anos setenta a discussão girava em torno da utilidade da caça para controlar a espécie, argumento abandonado depois que pesquisas comprovaram sua pouca solidez. Foi quando os defensores da caça passaram a considerar a importância econômica da mesma. Segundo estes, entre seis e oito mil pessoas trabalham diretamente na caça de raposas com cães.

Atualmente, o debate se encontra no campo das liberdades civis e na solução da questão: é ou não um assunto do Estado interferir numa pratica social e cultural de uma minoria da população?

Vale ressaltar que o principal argumento dos defensores da proibição de caçar raposas é que o uso dos cães causa um sofrimento sem sentido, sendo melhor matá-las a tiros que a dentadas. Assim, a proibição desta forma de caça à raposa, ou seja, com cães, não implica na proibição total de caça deste animal, que não corre risco de extinção na Inglaterra.

A “Aliança Camponesa”, um poderoso lobby de caçadores, considera que por trás do problema está um verdadeiro enfrentamento entre o campo e a cidade, no qual a maioria urbana ofende a uma minoria rural incompreendida. De acordo com esta associação, existe um movimento de desobediência civil a caminho, pois mais de cinqüenta mil pessoas já firmaram uma declaração de que desobedecerão a lei.

Para o Professor Neil Ward, da Universidade de Newcastle, especialista em conflito e mudança social na sociedade rural, "o enfrentamento político em torno a caça é na realidade um choque entre as idéias sobre a sociedade moderna e a sociedade tradicional que se acentuou com a chegada dos trabalhistas ao poder em 1997”. Assim, de acordo com este posicionamento, os políticos de direita, ou “tories”, possuem o interesse de conservar o passado, principalmente conservar os aspectos tradicionais da identidade nacional e rural inglesa, enquanto que os trabalhistas são mais identificados com a modernização e com a reforma das instituições tradicionais.

Outros argumentam que tudo não passa de uma maneira de acabar com “o deleite da classe alta”, pois historicamente a caça à raposa esta associada a classe alta latifundiária. No que discorda o Professor Garry Marvin, antropólogo e sociólogo da Universidade de Roehampton, que estuda a caça à raposa há dez anos. Para ele, não existem evidências de que apenas os ricos caçam e que os motivos para a prática da caça vão desde a tradição, o amor à paisagem, o contato com os cavalos até uma relação emocional profunda com o campo. E conclui: “A caça à raposa não tem nada que ver com o prazer de matar raposas. Isso seria como afirmar que os espanhóis vão às touradas pelo prazer de ver matar o touro. Isso, em absoluto, não é o caso. Os touros morrem nas touradas, as raposas morrem na caçada, mas é a maneira na qual se relacionam o toureiro com o touro e os caçadores com as raposas o que faz a singularidade destes acontecimentos”.

Para muitos, este debate será apenas mais uma excentricidade britânica, um povo que já possuiu um império fantástico que civilizou povos e destruiu culturas. Para outros, será tão somente a eterna disputa entre a cidade e o campo, a modernidade e a tradição, entre o novo que luta pra nascer e o velho que teima em não desaparecer.