quinta-feira, janeiro 13, 2005

O ano do Quixote




Eis o primeiro ensinamento da Cavalaria:
tu irás apagar o que até então
tinhas escrito no caderno de tua vida:
inquietação, insegurança, mentira.
E irás escrever, no lugar disto tudo,
a palavra coragem.
Começando a jornada com esta
palavra, e seguindo com a fé em Deus,
chegarás aonde precisas.

Paulo Coelho,
no “Manual do Guerreiro da Luz”,
citando o “Breviário da Cavalaria Medieval”.


“En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme...”, assim começa uma das maiores obras da literatura mundial, assim começa o relato das peripécias do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, obra espanhola escrita por Miguel de Cervantes Saavedra. Pois este ano de 2005 já foi declarado como o Ano do Quixote, tremendas as homenagens que se realizarão para comemorar os quatrocentos anos da publicação desta obra universal. Cervantes nasceu em 1547, nas proximidades de Madri, em Alcalá de Henares, e publicou a primeira parte de seu famoso livro em 1605.

Quatrocentos anos de vida e de sucesso, com milhares de edições em todas as línguas conhecidas do planeta, objeto das mais esclarecedoras e estapafúrdias teses acadêmicas, o Dom Quixote nos conta uma lição de vida fabulosa, pois conjuga o otimismo senil do combatente de moinhos de vento à dureza interiorana e sua realidade faminta de sobrevivência. Um idealista sonhador e outro realista incapaz de fantasiar.

Na verdade, a dupla de protagonistas é insubstituível desde o primeiro momento: o fidalgo e cavaleiro andante “numa Espanha de princípios do Século XVII que começava a esquecer o humanismo renascentista”, e seu fiel escudeiro, “rústico, glutão, de elementar sabedoria e enorme sentido comum, fruto de tantos séculos de luta pela simples sobrevivência”, como recentemente se leu no jornal espanhol El País.

Idealista e sonhador, Dom Quixote segue combatendo seus moinhos de vento. E quem não já procedeu assim, pelo menos uma vez na vida? Quem não perseguiu como um louco a objetivos que na verdade eram simples miragens? Como uma vez já afirmou Santiago Dantas, o verdadeiro louco é aquele que, sendo uma pessoa considerada sã, segue o combatente de moinhos de vento, o que inverte totalmente a ordem dos protagonistas e coloca a Sancho Pança no primeiro plano.

Entretanto, é a liberdade – além do amor e da justiça - o valor maior defendido por Cervantes na estória do cavaleiro da triste figura. E não podia ser diferente, pois a obra foi escrita depois de uma temporada de cinco anos de seu autor no presídio de Argel. Ademais, vale recordar que o amor pela liberdade é um dos grandes valores defendidos nas regras de Cavalaria, e por isso Dom Quixote afirma: "la libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni el mar encubre; por la libertad, así como por la honra, se puede y debe aventurar la vida, y, por el contrario, el cautiverio es el mayor mal que puede venir a los hombres". Vale lembrar que Dom Quixote é o mais famoso cavaleiro ibérico, mas não o primeiro. Na literatura, o mais antigo foi Tirant lo Blanch, lendário cavaleiro da tradição espanhola.


Não me considero um Quixote, apesar de que muitas vezes combati a moinhos de vento, mas na minha agenda pessoal tenho a seguinte frase escrita na página relativa ao dia 26 de julho, do escritor Ramon Llull, no seu “Livro da Ordem da Cavalaria”, do século XIII: “Se queres nobreza de coração, busca na fé, esperança, caridade, justiça, fortaleza, lealdade e nas demais virtudes, pois nelas reside a nobreza de coração; e por elas o nobre coração do cavaleiro se defende da maldade e do engano e dos inimigos da Cavalaria”. Que todos nós sejamos nobres de coração, mesmo sem sermos Quixotes na vida.