terça-feira, junho 14, 2005

A noite que nunca tem fim


Lembro que
olhando pela porta do bar
vimos a indecisa aurora
que animava as ondas.
Erguemo-nos, saímos.

Rubem Braga,
em “Da Praia”,
junho de 1946


Trago dentro do coração,
Como num cofre que se não
pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi
através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto,
é pouco para o que eu quero.

Fernando Pessoa,
como Álvaro de Campos,
Em “Passagem das Horas”,
22 de maio de 1916.


Já faz algum tempo que li na revista de domingo do jornal espanhol “El País” uma matéria sobre os melhores bares do mundo.

E se me lembro bem, um dos dez melhores bares do mundo estava numa ilha perdida, no meio do Atlântico Norte. Mais precisamente, refiro-me a revista estadunidense Newsweek haver considerado o Café Sport, na ilha de Faial, nas Açores, um dos dez melhores bares do mundo. Com isso, não imaginem que é um super bar, é apenas um bar muito simples, perdido numa ilhota no meio do nada. Mas que os marinheiros que cruzam o Atlântico param para tomar um trago, aliviar suas dores, escapar um pouco da solidão marinha e lembrar de casa.

Sobre a magia do Café Sport, o escritor catalão Enrique Vila-Matas e o italiano Antonio Tabucchi já escreveram muita coisa, inclusive antes de conhecê-lo pessoalmente. Antonio Tabucchi, escreveu sobre esse bar num livro chamado “Dama de Porto Pim”, afirmando ser um local intermediário entre uma taverna, um ponto de encontro, uma agencia de informação e uma agencia de correios. Durante a II Guerra Mundial, o Café Sport foi um ninho de espiões, algo parecido ao Rick's American Café, do filme Casablanca. Do seu mural de recados é possível encontrar de tudo, “desde notas, telegramas, cartas de amor, mensagens de náufragos da vida” como escreveu o escritor catalão Enrique Vila-Matas, que transformou esse mural de madeira em protagonista do seu conto “Recuerdos inventados”.

Da minha parte, já conheci alguns bares dignos de nota, não por seu luxo ou distinção de seus clientes, mas pela mágica e fantástica atmosfera envolvente que rodeia esses lugares. Alguns bares são pura extensão de nossas residências, tal o grau de felicidade e bem-estar que proporcionam aos seus paroquianos. Apesar de poder dizer que nunca vi meu pai num bar, pois ele só consegue tomar uma cerveja na casa dos seus pouquíssimos amigos, de preferência o Moreirão e o Moreirinha. Ou em casa, com a mamãe ao lado. De maneira que minhas aventuras pelos bares da vida foram algo que nasceram da minha própria necessidade de poder falar pelos cotovelos e de afogar minha dor de viver.

O primeiro bar que entrou na minha vida, ou melhor dizendo, o primeiro boteco, foi o já inexistente Bar do Tota, que ficava quase na esquina da Rua Olavo Bilac com 13 de maio, em Teresina, onde eu e meus colegas de Diocesano começamos nossos primeiros tragos. Ficava ao lado do Bar do Gaudêncio, que não deixava a gente entrar com o uniforme do Diocesano para não ter problemas com os padres, dizia ele. Mas o Bar do Tota era algo humilde, muito simples mesmo, onde apenas se podia tomar uma cerveja gelada e comer um dos piores pasteis de carne que já comi na minha vida. Mas, naqueles anos finais da década de 80 do século passado, era um paraíso para qualquer um que estivesse entrando na adolescência etílica. Recordo, agora, que passei minhas férias de julho de 1986 naquele bar, em companhia do historiador Pedro Vilarinho, o piauiense que mais entende de mulher, que naquela época ainda não entendia tanto sobre o tema, e vivia na casa de seus pais, há apenas uma quadra daquele mágico bar. Naquelas férias de julho de 1986, sentamos na calçada do bar, olhando as estrelas, conversando com os amigos do local e imaginando mil fantasias que o futuro nos traria.

O tempo foi passando, a vida adulta com suas tristes preocupações foi chegando, mas como era bom escutar as músicas do Roberto Carlos e dos The Fevers naquele barzinho cheio de amigos. Nossos maiores problemas eram o vestibular e o coração, que por essa época já tinha sido ferido por alguma menina. Bons amigos encontrei ali, alguns pra toda vida como o Marconi, o André e o Fernando.

Depois apareceu o Paralelo 33, na João XXIII, e então eu já vivia em Recife. Mas era só botar os pés na terrinha pra reunir-me com um monte de verdadeiros boêmios de outrora naquele ambiente que cheirava a churrasco na brasa. Nessa época ainda queríamos salvar o Brasil e encontrávamos solução para todos os seus problemas. Já era o tempo da universidade e as novas leituras faziam nossas cabeças. O James estava na CESVALE e o Wellington ainda fazia Comunicação Social. Ainda estávamos na década de 1980 e a redemocratização do país trouxe a Constituição Federal de 1988, que alimentava nossas esperanças no futuro.

Também havia nessa época de universidade o Agaves, do Paulinho, que com a Geovana e uma mesa cheia de gente interessante amanhecemos varias vezes em ritmo de café da manhã no Lanchinho. E, é claro, ainda existia o Nós e Elis, todo um marco na noite boêmia teresinense daquele tempo de esperança e iniciação noctívaga, onde o grande Clidenor era um rei. E, para fazer o registro, havia a Quinta Cultural da FUFPI, onde Flavio Castro tocava The Cure e a meninada bebia todas as caipirinhas que a mesada conseguisse pagar.

Depois veio o tempo de começar a trabalhar e o Café Viena, também em Teresina, entrou na minha vida, para sempre. Creio, sinceramente, que o Café Viena foi o bar que mais freqüentei na minha vida. Lá sempre encontrava o Ruszel e o Fernando, grandes representantes da Turma do Jamais. Como era sensacional chegar naquele lugar e o garçom James pedir ao Wolfie pra botar Don't stop me now, do Queen, enquanto me servia uma vodka com soda. Até hoje, sempre que regresso à terrinha, vou tomar uma vodka com soda no balcão do Café Viena, para admirar seu ambiente, e, principalmente, para me sentir em casa com meus pensamentos naquele lugar sagrado.

Ao El Asesino, na Espanha, me levou um velho amigo com quem não falo há anos, o Juan Carlos. Encantei-me na primeira visita. O El Asesino durante aqueles anos de fim do século XX era uma mistura de todas as tribos progressistas e libertárias que conviviam na Espanha. Professores, imigrantes, músicos, estudantes de doutorado, jovens bolsistas estrangeiros, estudantes Erasmus. Havia de tudo, até jovens babacas do direitista Partido Popular espanhol. Lembro de todos os “canadians” que me serviu o poeta Pepe Txontas, proprietário do Asesino. Depois soube que um grupo de jovens fascistas tentou invadir e quebrar o bar, provando mais uma vez que a imbecilidade humana não tem fundo. A verdade é que nunca consegui escrever sobre o Asesino...

Café Manon, em Valencia, Espanha, deveria ser considerado um local mais sagrado que muito templo que existe no mundo. Com suas poltronas acolchoadas ao redor das mesas baixinhas e o forro de madeira escura, passei muitas horas conversando com Rafa no Café Manon, escutando o “torico enamorado de la luna” em noites de tão feliz amizade que até Deus quis aproximar-se da nossa mesa, como já disse uma vez. Don Jesus, o dono do Café Manón, é a pessoal mais gentil e educada que já conheci, sempre disposto a agradar seus clientes, a quem considera uma família.

As vezes, ainda me vejo sentado no Café das Letras, na Plaza de Honduras, em Valencia, encostado na primeira coluna de frente ao balcão, bebendo um “cubata” e escrevendo minhas dores que ninguém nunca lerá. Havia uma equipe de pseudo-intelectuais que se reuniam pra contar lorotas, mas nas noites de quinta sempre havia os Contadores de Contos, que reuniam muita gente jovem.

E continuo descobrindo esses lugares mágicos por onde a vida me leva. O Manga Rosa, em São Raimundo Nonato, foi uma agradável surpresa. Realmente adorei conversar no balcão com minha amiga Márcia, a proprietária, ouvindo boa música com os amigos de Rotary Club.

Ou o bar do Marcos Hidd, nos fundos do Palácio de Karnak, onde nos reuníamos aos sábados pela manhã, e sorriamos com cada estória que nem só de pensar me dá vontade de voltar correndo. Marcos Hidd é uma destas pessoas escolhidas por Deus pra viver uma vida como ela merece ser vivida, cheia de sentimentos, de todos os sentimentos. Mal amanhecia o sábado, eu já esperava encontra o Josélio, Agenor Carvalho, e todos os que sempre passavam por nossa mesa repleta de amizade e bons fluidos.

Hoje, já não sou paroquiano de nenhum bar em especial. Às vezes até prefiro ficar em casa bebericando uma garrafa de vinho enquanto escrevo minhas estorinhas que ninguém nunca vai ler. Não que eu não goste de freqüentar um barzinho e conversar com meus novos amigos, muito pelo contrário. Na verdade, minhas melhores lembranças de bares foram as que contei aqui. São apenas lembranças de um insone no meio da noite no planalto central do Brasil, mas a democracia das mesas de bar mantém acessa a chama da amizade e da vida.

Tudo tem seu momento e seu lugar. Cada um de nós terá uma estória pra recordar sobre um bar. Eu ainda tenho muitas, que o espaço e o tempo não me permitem, ainda, contar. Mas a felicidade é medida em conta gotas, enquanto passa o tempo e ficamos mais adultos e chatos, os bares estarão esperando por novos paroquianos, novas gerações de poetas, músicos, loucos e intelectuais que sentirão o chamado irresistível e doce da noite, entre doses e debates acalorados sobre quase tudo. Talvez o que sempre nos unirá será saber que sempre existirão noites e boêmios, noites e vida, música e paixão, poesia e sonhos. Quiçá, no céu, nos esperará um bar celestial com uma grande mesa, com Neruda, Vinicius, Tom Jobim, e tantos outros que já foram. E por fim, encontraremos a noite que nunca tem fim.