segunda-feira, outubro 17, 2005

A grande família




I would love to go
back to the old house
but I never will

Back to the old house

THE SMITHS,
em “Hatful Of Hollow”,
novembro de 1984,
Reino Unido.


Deus é realmente um sujeito muito irônico. Mas que grande presente que nos deu. A família é sempre necessária, tanto em boas horas, como nas horas ruins. Ter um pai, uma mãe, irmãos! Que benção divina! Que sopro divino é possuir gente de nosso sangue por perto, nem que seja pra dizer que não estamos muito bem.

Sinto profundamente muita pena daqueles que nunca saberão o que é ter uma família. Não que devamos sempre estar junto dela. É necessário, às vezes, afastar-se, calar a boca, fugir de suas tão familiares opiniões. Às vezes, é necessário um pouco de sadio individualismo e caminhar sozinho. Mas todos estes momentos não conseguem apagar a grande importância que é ter uma família, um endereço certo, uma direção para as cartas chegarem.

Principalmente, quando os tempos não estão tão bons e a vida parece um filme sem graça, é quando mais precisamos de casa. Portanto, nem falar de quando estamos sozinhos, num país distante, longe destas pessoas que nos aceitam quase por obrigação ou costume, sem julgamentos duros, com uma complacência que não se encontra no mundo real.

Lembro até hoje do meu pai, sempre indo trabalhar. Nunca estava por perto, sempre tinha que ir trabalhar. Como aquela frase muito antiga que eu vi num filme destes qualquer, tipo “Sessão da Tarde”: Pai é como luz de geladeira, a gente não sabe o que acontece quando fecha a porta. De maneira que ele apenas saia pra trabalhar, da mesma maneira que fechamos a porta da geladeira.

E me lembro, mais ainda, de seu cheiro. Cheiro de pai. Eu sei que é difícil para quem nunca teve pai por perto compreender sobre o que’u estou me referindo, mas todo pai sempre tem esse cheiro de pai. É um cheiro natural, não é forte nem fraco, é um cheiro único. Como sentir e nunca esquecer o cheiro da mulher amada. Todo pai possui o cheiro de pai, e dele não se pode falar muito, pois é necessário ter pai para compreender, para saber do que estou dizendo.

Igual ao cheiro de pai, é preciso sentir o cheiro de mãe, esta coisa tão estranha, este ser tão misteriosos. Afinal, você estava dentro dela por nove meses, e se não consegue lembrar deste tempo, não se preocupe, quase ninguém pode lembrar mesmo. Mas é preciso lembrar quantas vezes esta mulher te protegeu do teu pai, do braço forte, da voz dura e da palmada segura.

E, como se não bastasse, é necessário lembrar do cheiro de avô e de avó, da casa grande e velha, que está naturalmente no interior, na cidade da infância, no mundo do passado e que não tem, necessariamente, que ser feliz. Somente é a casa de teus avós, a casa dos velhos que tiveram um dia um menino que hoje é teu pai. Sem esquecer das tias, velhas tias, sempre tão tias. No meu caso a cidade da memória é Floriano, está no sul do Piauí, naquela grande curva do rio Parnaíba, e a velha casa grande está na rua José Messias, não importa se o nome da rua mudou, para mim será sempre rua José Messias.

A grande família continua, com novos personagens, com as netas e netos, crianças que não nasceram de ti, mas do sangue dos teus irmãos. Meninas e meninos que estarão prontos pra vida, para o amanhã, para o indecifrável futuro que hoje construímos, sem nos esquecer do passado.

Mas não é só. Há os tios, os primos, a grande família cresce em progressão geométrica. Não consegue parar. As listas de chamadas das escolas de amanhã estarão cheias de sobrenomes conhecidos, tão próximos e, talvez, tão distantes.

É ávida, que igual a um rio, não pode parar. E renasce a cada dia, queiramos ou não. Segue seu percurso, seu inevitável caminho temporal. Talvez a grande família seja apenas um pensamento divino, um segundo na grande página do tempo, mas é o que basta pra mim, que caminho sozinho, nesta avenida iluminada de luz amarela e vento frio, que todo mundo chama “vida”, e que chamo “destino”.

* Escrito na cidade de Valencia, Espanha, em 31 de maio de 1999, primavera.