quarta-feira, março 01, 2006

Até o fim


Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
(...)
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro, acabou minha renda
(...)
Eu já nem lembro pronde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Chico Buarque
"Até o fim",
1978.
Tem dias que a gente fica tristão mesmo, principalmente depois do carnaval, achando que aquela alegria boba apenas adia o momento de decidir tanta coisa que a gente considera importante e que nem começou a pensar direito. Aí vem uma amiga nova que já conhece um pouquinho do nosso jeito de ser e, olhando praquela cara triste de dar pena, diz: - Você está sem plano de vôo. E acerta na mosca. Bingooooooo. Na mosca mesmo, porque faz tempo que você anda sem rumo, sem “plano de vôo”. Porque está escrito na tua cara que você navega sem rota há séculos num oceano Atlântico de opções, com toda tua vontade de ser feliz e de comer o mundo.

Mas quantas vezes você já navegou sem plano de vôo e afinal, que diabos significa ter um plano de vôo na vida? Claro que eu já fiz mil planos na vida e que todos escorreram feito cerveja gelada pela garganta de um sedento no passar dos anos. E tinha que ser assim, não há outro modo. Porque a vida é isso mesmo. Hoje você faz planos e planeja tudo certinho, aí vem o destino amanhã e revira tudo, deixa tudo igual que antes, de pernas pro ar. Minto, isso acontece se você tiver um caquinho assim de sorte, porque pode ficar muito pior. Então o melhor é ter idéias, ter princípios, confiar em você mesmo, esperar um pouquinho enquanto passa o “banzo” pra voltar a sorrir e, de novo, fazer mil planos, esperando sempre que a grande roda da vida volte a rodar e parar no teu nome.

Todo dia é segunda-feira, todo dia é dia de recomeçar, de sacudir a poeira e dar a volta por cima. Dizem que os suicidas odeiam as segundas-feiras. A idéia de recomeçar os arrasa. Pois nada disso ocorre comigo. Eu simplesmente amo as segundas-feiras, encanta-me a idéia de recomeçar a cada dia, com mais garra, com mais pique, esperando sempre aquela sensação de gol do Fluminense no estádio das Laranjeiras lotado. Segunda é dia de ir pro Armazém do Ferreira e beber chope, e comer quibe, e encontrar o Piauí e perguntar pela última piada de Brasília. É dia de chegar no trabalho e berrar na porta: - Bom dia torcida brasileira!

É que às vezes é preciso dar um tempo nos planos e viver o dia. Agüentar a chatice da melancolia pra escrever algo interessante. Como em “Coração de caçador”, às vezes faz falta sofrer um pouquinho pra começar a filmar, mesmo estourando o orçamento, deixando os atores malucos e o produtor arrancando os cabelos de puro desespero. De vez em quando faz falta ficar meio perdido mesmo, esperando que as idéias amadureçam um pouquinho, que o mundo se esqueça de nós pra podermos sorrir outra vez. Mas, como diz a canção nordestina: Não se avexe não.

Então vamos com calma. Já já aparece outra loucura, outra fantasia, outro projeto. A vida não pára. Pode ser aqui, agora, ou no estrangeiro, aí eu vou embora. Quem sabe ser funcionário da ONU ou mesmo professor em Angola. Largar tudo e investir em viver de literatura ou mesmo voltar pra província e contar estórias de como você foi “cavaleiro andante” pra impressionar adolescentes estudantes de direito ou letras. Eu já me acostumei em viver assim, flibusteiro cigano, sem ter casa nem bandeira, vivendo de qualquer maneira, no meio de um mundo tão louco, encontrando bondade e maldade em cada porto.

No meio da calmaria eu não me stresso. Afio minha espada, bebo meu rum, canto minhas canções. Sou caolho e perna-de-pau. E tenho um lenço atado à cabeça. As velas estão inçadas, as amarras estão soltas e minha âncora há muito está levantada. Quando o vento soprar, eu vou a mil, gritando feito um louco no meio do oceano mais desconhecido ou nos mares do sul. Tenho munição, a tripulação está descansada e temos fome de riquezas e botins de guerra. Oh, inimigos meus, preparem-se, porque este judeu errante está transbordando de desejo de vitórias.

E será como sempre, novos desafios, grandes projetos, batalhas inesquecíveis, vitórias e derrotas. Vida, acima de tudo. Que os adversários estejam à altura dos nossos heróis e que as mocinhas estejam com os corações cheios de paixão e lábios abarrotados de ternura molhada, entre outras coisas. Sempre em frente, jamais voltamos, feito a “Royal Navy”, mas sem bandeiras ou portos obrigatórios a que retornar. Sem amos nem escravos. Apenas nós mesmos e o grande e desconhecido futuro. Cara a cara.

Seja o que for, eu há muito estou preparado. Porque quem vive sem plano de vôo sempre está preparado. Pra encontrar você ao dobrar uma esquina, pra desencantar de vez com nossa América Latina ou mesmo pra apertar o nó da gravata. Meu coração é novo e meu anjo da guarda já enlouqueceu faz tempo. O importante é saber tirar proveito do silêncio, da falta de riso, da falta de saco, deste vazio momentâneo. É saber quem você é de verdade, no meio do tiroteio infernal ou no meio da companheirada mais boçal. Sempre com grandes planos pro futuro, cuidando dos pequenos, celebrando a vida e cantando todo dia: Força sempre, até o fim.