quarta-feira, dezembro 17, 2008

Europa abandona o trabalhador

Europa abandona o trabalhador

Dois modelos se enfrentam amanhã na União Européia - UE: a jornada de 48 horas e a flexibilidade – O acordo privado entre empresas e empregados que propõe Brown pode dinamitar o sistema de proteção.

ANDREU MISSÉ – El País - 16/12/2008

Tradução de Antonio de Freitas

Europa é só um mercado ou é também um espaço de proteção social? As relações trabalhistas devem se estabelecer entre o trabalhador de maneira individual e o empresário como se tivessem igual capacidade para negociar ou devem ser fixadas de maneira coletiva? As leis trabalhistas devem ser apenas nacionais ou também européias?
Todas estas questões são as que estão no fundo do debate que estes dias se resolverá no Parlamento Europeu e que vai por em tensão as forças políticas. O incerto resultado da votação de amanhã - se requer maioria absoluta e as posições estão muito ajustadas - marcará também o caminho futuro que empreenderá a União Européia - UE. E, de maneira especial, a participação e o debate das próximas eleições européias de junho de 2009.
A ‘pedra de toque’ é a discussão sobre a duração máxima da jornada trabalhista, que atualmente é de 48 horas semanais. Caso prosperem as teses liberais que impulsionam o Reino Unido e seus aliados, os novos países do antigo bloco comunista, hoje se imporá a chamada “liberdade de opção”, que implica que a duração do tempo de trabalho será pactuada livremente entre empresário e trabalhador, e a jornada se poderá alongar até as 60 ou 65 horas segundo o caso.

"Com isto renasce a idéia de que o contrato de trabalho será um acordo entre o trabalhador e o empresário", adverte Alejandro Cercas, eurodeputado socialista espanhol, proponente da diretiva, que organizou a defesa dos direitos trabalhistas desde a trincheira do Parlamento Europeu. Cercas assegura que caso se generaliza a exclusão voluntaria, "não haverá leis, não haverá convenções, e será o fim dos sindicatos". "Isto é só a ponta do iceberg. Começamos pela jornada e logo virão os salários e os demais direitos trabalhistas", adverte.
Em sua opinião, a desregulamentação trabalhista supõe dinamitar os princípios da primeira convenção internacional sobre as condições de trabalho. Quando se criou a Organização Internacional do Trabalho (OIT) em 1919, estabeleceu-se a jornada trabalhista de no máximo oito horas e a semana trabalhista de 48 horas.

A batalha entre as duas idéias na Europa está sendo muito intensa. Mais de 50 diplomatas britânicos foram mobilizados por toda a UE para lograr que os deputados dos demais países façam avançar o modelo liberal. A pugna provocou a divisão interna entre os grandes partidos PPE e PSE, e parece que a vanguarda ficará com o Reino Unido e os novos países da ampliação, exceto Hungria, por um lado, e a velha Europa por outro.
Os britânicos tentam atrair os votos dos antigos países comunistas do Leste europeu advertindo de que a UE quer retirar-lhes as vantagens competitivas ao dispor de uma legislação trabalhista menos exigente.

Na Espanha, contudo, todos os grupos parlamentares do Congresso votaram no outono passado de maneira unânime contrários à introdução do ‘opting out’ ou liberdade de opção.
O proponente assinalou que "os temores ante a globalização e as tentativas de certos países de lograr vantagens competitivas graças a longas jornadas de trabalho podem contar com apoios nas instituições européias, até agora comprometidas com ganhar a batalha da concorrência sobre a base da excelência e não sobre a base de desmantelar o modelo social do pós-guerra, nem sobre o ‘dumping’ social entre Estados".
"O debate", afirma um dos negociadores comunitários, "é um assunto ideológico, é entre os que querem mais regulação ou menos regulação, entre os que querem mais Europa ou menos Europa". "Estou convencido", completa, "de que 70% dos que votarão contra o ‘informe Cercas’ são ‘euroescéticos’".
A história recente se remonta a 1993, quando a UE aprovou uma diretiva que, pela primeira vez, estabeleceu o máximo de 48 horas de trabalho por semana, e definiu o tempo de descanso e de férias. O Governo de John Major obteve o ‘opting out’ ou exclusão voluntária por um período temporal de 10 anos. Os resultados conseguidos no Reino Unido são ilustrativos: mais de 3,2 milhões de trabalhadores trabalham mais de 48 horas, dos quais cerca de meio milhão trabalha mais de 60 horas.
Um estudo da Comissão Barnard, Deakin e Hobbs, da Universidade de Cambridge, destacou o alongamento da jornada trabalhista e seus efeitos sobre a saúde dos trabalhadores após a aprovação do ‘opting out’ individual no Reino Unido. A taxa de trabalhadores com horários de mais de 48 horas semanais se eleva a 17%, ainda que superada pela Grécia (32%) e Polônia (23%).

Uma pesquisa realizada à pedido dos sindicatos britânicos TUC indica que quem "trabalha mais de 60 horas semanais, e talvez mais de 50, têm maior risco de doença cardiovascular". A mesma pesquisa demonstra ainda que "o excesso de jornadas superiores às 48 horas, reduz a satisfação trabalhista e aumenta significativamente o risco de problemas de saúde mental".
No conjunto da União, as longas jornadas trabalhistas são um fenômeno predominantemente masculino, com uma taxa que chega a 29% da população ocupada, o dobro que as mulheres. Neste sentido, a Confederação Européia de Sindicatos (CES) assinala que "voltar às jornadas trabalhistas longas e insalubres, assim como a uma divisão tradicional do trabalho entre homens e mulheres, obstaculizaria a plena participação destas no mercado de trabalho e teria uma influencia negativa nos jovens pais na hora de tratar de conciliar o trabalho com a vida familiar".
O CES e outras organizações sindicais européias convocaram para hoje (16/12) uma manifestação em Estrasburgo na que participarão milhares de sindicalistas de toda Europa e que reproduz o clima de mal estar trabalhista que já se suscitou com a diretiva de serviços, conhecida também como ‘diretiva Bolkestein’, pelo nome do comissário que a promoveu, e que muitos associam ao rechaço da Constituição européia na França.
O conflito envolveu profundamente às organizações empresariais, que destacam as vantagens da contratação individual. Um documento firmado pelas patronais européias ‘Businesseurope’ e ‘UAEMP’, junto a ‘Eurocâmaras’ e o ‘Centro Europeu de Estudos Profissionais’, assinala que "os responsáveis pelas empresas não utilizam a possibilidade dos empregados trabalharem constantemente mais horas, porém apenas para atender as flutuações temporais da demanda". Para os empresários "os assalariados que firmem o ‘opting out’ também se beneficiam na medida em que podem trabalhar horas extras, por exemplo, e complementar seus salários, o que é uma consideração significativa nas atuais circunstâncias econômicas".
A duração do tempo de trabalho foi especialmente polêmica em alguns coletivos como os médicos e os bombeiros. No caso dos médicos, que junto aos estudantes de medicina formam um coletivo de mais de três milhões de profissionais, o recurso aos tribunais representou um importante respaldo para a defesa de seus interesses.
O Tribunal das Comunidades Européias, com sede em Luxemburgo, decidiu a favor dos profissionais da medicina em três sentenças; “Sindicato de Médicos de Assistência Pública (Simap)”, em 2000; e, posteriormente, nas decisões judiciais dos casos Jaeger e Pfeiffer. Nestas três resoluções judiciais do tribunal da UE ficou estabelecido que o tempo de plantão deveria ser considerado tempo de trabalho porque o empregado estava à disposição do empresário e, portanto, não podia dispor do tempo livre. Os Estados sustentam que a consideração do tempo de plantão dos médicos como tempo de trabalho provocaria a quebra dos sistemas de saúde pública em muitos países.
Nas negociações entre a Comissão e o Conselho para revisar a diretiva de 1993 e ter em conta as mencionadas sentenças introduziram o conceito de tempo de plantão distinguindo entre um período ativo e um período inativo. Segundo o Conselho, este último não deve ser considerado como trabalho.
Por sua vez, a proposta elaborada pelo Parlamento considera que todo o tempo de plantão "incluída a parte inativa" deve ser considerada como tempo de trabalho. Porém, admite que através de convenções entre as partes ou regulamentações trabalhistas este tempo de plantão pode ser computado de maneira distinta de forma que não infrinja o máximo das 48 horas semanais. Ontem várias centenas de médicos se manifestaram em Estrasburgo, e vários milhares em toda Europa, para lograr que se reconheça seu trabalho. Claude Wetzel, presidente da Federação Européia de Médicos Assalariados, manifestou: "As medidas da diretiva ameaçam claramente a nossa saúde e a de nossos pacientes". Citou um estudo de 2002, que demonstrava que "depois de 24 horas de trabalho uma pessoa tem as reações equivalentes a alguém que tenha uma taxa de álcool no sangue de 0,8%".
O comissário de Emprego e Assuntos Sociais, Vladímir Spidla, interveio ontem no plenário para exigir um acordo entre os deputados e os Estados para acabar com a insegurança jurídica sobre os plantões médicos, e apelou ao "realismo dos ‘eurodeputados’". Para os facultativos, a solução está em ampliar as equipes para poder realizar o trabalho nas condições devidas.
A diretiva havia permanecido bloqueada até agora pela oposição da Espanha, França e Itália. Com a chegada de Nicolas Sarkozy e Silvio Berlusconi ao poder em seus respectivos países se quebrou a defesa ante a enxurrada de liberalismo e desregulamentação.
Na última decisão do Conselho no passado junho só Espanha e Grécia votaram contra. Abstiveram-se Bélgica, Chipre, Malta, Portugal e Hungria. Insuficientes para deter o ‘opting out’.
A disputa se verá amanhã no plenário do Parlamento. Para evitar que se rompa o limite de 48 horas e a semana trabalhista possa se alongar até as 65 é preciso que prospere alguma das emendas apresentadas, o que requer a maioria absoluta, equivalente a 393 votos. As pesquisas estão muito ajustadas, pendentes de 15 ou 20 votos.
Properando alguma emenda haverá que abrir um período de conciliação que pode durar até três meses. Quanto mais se alongue, mais se acerca a discussão das eleições do Parlamento Europeu do próximo junho, e, portanto as possibilidades de que influa nas opiniões dos votantes, em sua maioria trabalhadores e profissionais afetados pela diretiva.

Em sua intervenção ontem, Cercas destacou: "Temos ante nós uma oportunidade para conectar com as preocupações de nossa cidadania". "Europa não é um escuro labirinto de egoístas ilustrados nem de políticos sem coração e não estamos surdos nem mudos. Ao contrario, nossos cidadãos verão que sabemos pôr os direitos e a maioria na frente da cobiça e o desvario de uns poucos ideólogos da extrema desregulamentação".
Valérie Létard, secretaria de Estado do Ministro de Trabalho e Relações Sociais da França, defendeu o compromisso alcançado na posição comum, auspiciado pela maioria de Estados. Em sua opinião, se "trata de um avance para a situação dos trabalhadores europeus”.
A proposta do Parlamento elaborada por Cercas oferece uma ampla flexibilidade como que o ‘opting out’ não desapareça até dentro de três anos.
A ‘Eurocâmara’ rechaça ampliar a 65 horas a jornada laboral

Aprovadas, por maioria absoluta, varias emendas que bloqueiam a diretiva de tempo de trabalho. - O Parlamento Europeu e os governos terão que voltar a negociar em um período de 90 dias
AGENCIAS - Estrasburgo – El País - 17/12/2008

Tradução de Antonio de Freitas
O Parlamento Europeu rechaçou ampliar a jornada semanal de trabalho a 65 horas. Os ‘eurodeputados’ deram seu apoio a uma emenda de um parlamentar espanhol que, de fato, paralisa a chamada diretiva das 65 horas e obriga os governos dos 27 a voltarem a negociar. A norma, aprovada pelos ministros de trabalho da UE, previa eliminar o limite máximo da jornada laboral semanal, fixado em 48 horas, e dar liberdade para que empresário e trabalhador acordem o tempo de trabalho, com um máximo de 60 ou 65 horas, segundo os casos, e era considerada como um retrocesso nos direitos trabalhistas.

O Parlamento aprovou por maioria absoluta uma série de emendas que corrigem o aprovado pelos ministros de Trabalho, pelo que obrigam a estes a voltarem a redigi-la e bloqueiam, por tanto, a aprovação da diretiva das 65 horas. Agora, se abre um novo período de negociação de 90 dias (denominado "de conciliação") entre o Parlamento e o Conselho ao cabo do qual, se não houver acordo, decai o texto.