quinta-feira, janeiro 21, 2010

Madrugada de cervejas e James Joyce


Madrugada de cervejas e James Joyce

Admiradores do escritor se reúnem em Nova York para ler 'Finnegans wake', o livro mais sombrio da história

EDUARDO LAGO – El País - 19/01/2010

Tradução de Antonio de Freitas Jr.
Revisão de Tathyane Freitas

Em um ensaio intitulado ‘O fonógrafo de Joyce’, Jacques Derrida conta que estando em uma livraria de Tóquio ouviu um turista estadunidense exclamar: "Não seria possível reduzir tanto livro que se publica no mundo a somente um?". "Teriam que ser dois", foi a resposta do filósofo francês, "Ulisses e Finnegans wake".

Nem todo mundo estaria de acordo. O consenso, praticamente universal, é que estas duas obras de James Joyce (1882- 1941) ocupam o primeiro posto de duas listas completamente distintas: ‘Ulisses’ (1922), um dos ápices da literatura universal, é o melhor romance já escrito em língua inglesa. Enquanto que ‘Finnegans wake’ (1939), último livro de Joyce, ao qual dedicou 17 anos de sua vida, possivelmente seja o texto literário mais sombrio e impenetrável de todos os tempos.

Entre o final de uma novela e o início da outra transcorreu um ano durante o qual Joyce foi incapaz de escrever o que fosse. Sua imaginação se despertou de repente em 9 de março de 1923. Em uma carta dirigida a sua amiga, a editora Harriet Weaver, datada de um dia após aquela data, o autor anunciava assim o nascimento de sua próxima novela: "Com grande dificuldade, ontem peguei a caneta e consegui escrever duas páginas". Passaram quase duas décadas de entrega absoluta. Um nutrido grupo de admiradores, entre os quais figuravam os escritores mais notáveis de seu tempo, acompanhou com atenção a laboriosa gestação do texto, que foi aparecendo por entregas em diversas publicações sob o título provisório de ‘Obra em curso’. O estranho dos fragmentos que iam aparecendo deixava boquiabertos aos fãs de Joyce, porém ninguém se aventurou a fazer um juízo definitivo até ver a obra publicada. Quando isso ocorreu, em 1939, a reação majoritária foi de rechaço. Das duas uma: ou o grande mestre havia perdido a cabeça e produzido um monstro literário inclassificável, ou talvez Joyce mergulhara numa experiência radical com a linguagem. Fosse como fosse, o texto de ‘Finnegans wake’ era completamente ininteligível.

É justo aqui onde entra em jogo a magia de Joyce: apesar da extrema inacessibilidade de suas propostas narrativas, sucumbem a sua fascinação desde os especialistas até gente com escassa preparação literária. Um artigo publicado em 16 de junho do ano passado no ‘Irish Times’, data em que transcorre a ação de ‘Ulisses’, conhecida como ‘Bloomsday’, revelou que a maioria das pessoas que saía à rua disfarçada como o personagem da novela não havia lido, apesar de muitos haverem tentado. Com ‘Finnegans wake’, cuja dificuldade é muito superior à de ‘Ulisses’, o mistério se agiganta.

Talvez seja em Nova York onde exista a maior tradição em celebrar a obscura novela do escritor irlandês. Quando se publicou a primeira edição em 1939, se armou um cenário de velório (um dos significados do vocábulo ‘wake’ é velório) na livraria Gotham no qual participaram celebridades literárias da época disfarçadas de personagens. Nesta mesma livraria, desaparecida em 2006, se fundou em 1947 a ‘James Joyce Society’, cuja carteirinha número 1 ostentava o nome de T. S. Eliot. E ali mesmo se fundó também, há exatos 20 anos, ‘The Finnegans Wake Society’. Desde então, os componentes da sociedade se reúnem na última quarta-feira de cada mês para ler e comentar a obra. Entre os membros figuram representantes de toda classe de profissões. A primeira leitura do texto, cuja extensão total é de 628 páginas, durou cinco anos. Ao se fazer um balanço, considerou-se que talvez se houvesse procedido com excessiva precipitação. A segunda leitura começou em 1996. Por enquanto estão pela página 344.

Para os ‘finneganianos’ de Nova York, o equivalente a ‘Bloomsday’ é ‘A noite de Earwicker’, em alusão a um personagem do livro assim chamado. Convém indicar que a ação transcorre integralmente de noite. Na quarta-feira 13 de janeiro, aniversário da morte de Joyce, uns 40 ‘finneganianos’ reuniram-se no antigo pub irlandês do sul de Manhattan para celebrar ‘Earwickernight’. Os participantes estabelecem uma animada conversa enquanto dão conta de uma ‘guinness’ ou um uísque antes de se sentarem para jantar em mesas comuns. "Sejamos honestos", diz Charlie Caruso, jornalista da revista Newsweek e do jornal The New York Post durante mais de 50 anos, "o livro é um desastre, porém consegue algo que não consegue nenhum outro: reunir ao seu redor um montão de gente maravilhosa". Ron White, membro fundador, não está de acordo: "Claro que tem sentido, só que não é possível descobri-lo sozinho. Tem que ler o livro em grupo".

A uma indicação de Murray Ross, o presidente, o mestre de cerimônias, um homem de cabelo branco, sorriso perene e gestos pausados, Kevin Gilroy, dá começo à velada. Antes de envolver-se no jogo de charadas, passatempo favorito da família Joyce, o grupo entoa ‘Finnegans wake’, balada tradicional irlandesa que narra a ressurreição de Tim Finnegans, quando derramaram sobre ele uma garrafa de uísque em seu velório, história que evidentemente aparece na novela. Os ‘finneganianos’ cantam ‘a capella’ e não desafinam muito. Concluída esta parte do ritual, se apressam a iniciar o jogo de adivinhações. Ross e Gilroy jogam dentro de um chapéu fundo uns papeis com as frases extraídas do enigmático volume. Distintos voluntários as leem em silêncio e, mediante gestos, tentam transmitir seu conteúdo para a plateia. Resulta assombrosa a facilidade com que, uma a uma, conseguem identificar as frases secretas, até que fica somente a última. Uma garota a retira enquanto a platéia de ‘finneganianos’ observa, em animada tensão. A esposa de Humphrey Earwicker, presença que Joyce envolve num mistério que a faz particularmente atraente, responde pelo nome de Anna Livia Plurabelle. Os sinuosos movimentos que faz com as mãos a encarregada de representar a última adivinhação conseguem transmitir a viagem que efetua pelo tempo a elusiva criatura de ficção. Como se fosse ensaiado, vários presentes se põem de pé de um salto e recitam a uma só voz: "Anna foi, Livia é, Plurabelle será". Impossível não imaginar Joyce sorrindo em sua tumba.

Eduardo Lago, diretor do Instituto Cervantes em Nova York, é membro fundador da espanhola ‘Orden del Finnegans’.