segunda-feira, fevereiro 22, 2010

Desconstruir a Miguel Hernández


Desconstruir a Miguel Hernández

JESÚS RUIZ MANTILLA – El País - 20/02/2010

Tradução de Antonio e Freitas Jr.

Joan Manuel Serrat analisa canção por canção ‘Hijo de la luz y de la sombra’, seu novo disco dedicado ao poeta Miguel Hernández -o primeiro foi gravado nos anos setenta -. O álbum, que coincide com a celebração do centenário do escritor, sai à venda no dia 23.

A metade de aperitivo e a outra parte para depois de comer. Não há maneira melhor de digerir as novas canções que Joan Manuel Serrat compôs para Miguel Hernández que de pouquinho, junto a uma garrafa de seu vinho, ‘Mas Perinet’, e enquanto fazemos juntos a digestão de uma gloriosa pasta com trufa: a que preparou o gourmet mais curtido e celebrado por estes mundos da música popular espanhola.

Não há duvida de que Serrat sabe exprimir a vida. E contar seu trabalho a fundo, com a paixão do artesão e a curiosidade do eterno principiante, aos 64 anos. Hernández vai e vem a sua casa com a confiança de um familiar. Agora se comemora seu centenário e Serrat compôs 13 canções para pô-las na boca e na pele de uma nova geração.

Igual a quando, a princípios dos anos setenta, lhe resgatara através de sua voz para nunca mais tirá-lo da consciência dos meninos, hoje quarentões, e dos jovens, agora sessentões, que tinham a noticia através deste cantor da luta, do drama e da esperança do poeta de Orihuela. Aquele pastor de cabras, autodidata, preso republicano, vítima do franquismo, que lançou seus versos renegando de um destino miserável contra o qual lutou com a força de superdotado.

Aquelas primeiras canções que ele mostrou à viúva do poeta, Josefina Manresa, um bom dia em que teve que lhe presentear um toca-discos para poder escutá-las juntos ficou na memória. O repertorio ‘hernandiano’ aumenta agora com estas peças novas, que lançará em disco no próximo dia 23 (‘Hijo de la luz y de la sombra’) e sairá em turnê a partir de 27 de março. Somente dedicará as apresentações ao poeta. "Que ninguém me peça Mediterrâneo porque não irei cantar", avisa. Leva os nervos entre as cordas da guitarra ainda que negue. Fez as malas com pouca roupa e um bom estoque de versos. Sai de viagem, outra vez, com Miguel Hernández. Porém antes conta o porquê de cada canção.

1. Uno de aquellos. É o poema que dedicou aos brigadistas. "Las patrias te llaman con todas sus banderas", diz a letra. "Un alma sin fronteras". Para Joan Manuel Serrat significa o espírito de que não há batalha contra a injustiça, contra o abuso, que nos seja indiferente. "É a canção do poeta sem pátria, do lutador idealista, que se encaixa perfeitamente em muitas situações de hoje", assegura.

2. Del ay al ay por el ay. "Aqui se adivinha um fatalismo, uma sombra visionaria que amedronta", diz o músico. Comenta ao marcar uns versos: "Sucias rachas tumban todos los cometas que levanto". O poema data de 1934, porém é como se indicasse o que vai ocorrer ao longo dos anos que lhe restam de vida antes de morrer abandonado da mão de Deus na prisão de Alicante. A canção tem um tratamento de queixa profunda: "Em nenhum momento tratei de lutar com construções musicais. Tentei que o poema me devolvesse melodias frescas, naturais".

3. Canción del esposo soldado. Aqui soa de repente um bolero antigo. "É algo progressivo", explica Serrat. Uma caixa que marca os passos de uma marcha com ar ‘raveliano’ ou de ‘saeta’ na qual se escuta: "Es preciso matar para seguir viviendo. Un día iré a la sombra de tu pelo lejano".

4. La palmera levantina. Do calafrio precedente, entra com suavidade uma espécie de brisa cálida. Trata-se de uma canção cheia de sensualidade mediterrânica. "Esta é a época juvenil, quando lia a Góngora antes dele escrever ‘Perito en lunas’ (publicado em 1933)", comenta Serrat. "Nesse aspecto, Hernández é um poeta transparente. Pode saber a quem está lendo em cada momento de sua criação".

5. El mundo de los demás. Seguimos imersos na umidade musical. Para esta canção, este autor de mares e céus abertos elegeu um tom, diz ele, "aquático, algo que nos balança". É uma viagem interior. "Cegos de ver, vimos, olhamos para dentro, vemos o mais íntimo". Pertence ao ‘Cancionero y romancero de ausencias’ (1938-1941). "Possui a lucidez de quem sabe que o mundo não é o que parece".

6. Dale que dale. "Esta é a época em que escrevia como San Juan de la Cruz", comenta o autor. "Dale Dios a mi alma hasta perfeccionarla", canta Joan Manuel. Andava impregnado de um catolicismo muito social, à imagem e semelhança dos místicos. Porém o músico, no ritmo massacrante e obsessivo dos versos, entrevê outras coisas: "Um claro onanismo", assegura. Por trás soa leve, discreta, a voz de Miguel Poveda.

7. Cerca del agua. Esta canção é uma viagem. Difícil. Imaginário. O que separa a cela da água. "É impressionante porque da obscuridade se traslada à luz, é uma reafirmação de sua liberdade, quer escapar ao mar", comenta Serrat. "É todo um exercício de resistência e imaginação".

8. El hambre. Os versos deste poema são intensos. "Es el primero de los conocimientos. La ferocidad de nuestros sentimientos", reza o texto. "Não propõe a fome como uma consequência, mas como uma presença que configura sua identidade", assegura Serrat. A do menino e do adolescente que viveu a experiência. O homem que construiu a fome.

9. Tus cartas son un vino. Poema de juventude, da época em que escrevia à sua mulher, Josefina, com o alento do amante distante. "Cuando me falte sangre con zumo de clavel", dizem os versos, por exemplo. É uma peça evocativa, melancólica, apaixonada.

10. Si me matan, bueno. É uma adaptação da obra teatral ‘El Pastor de la muerte’ (1938). "A música leva um perfume cubano por ser uma homenagem a Pablo de la Torriente, brigadista da ilha, muito amigo de Hernández", assegura Serrat. Um tema combativo que realça a coragem daqueles que entregam suas vidas pelo que em aparência não lhes incumbe.

11. Las abarcas desiertas. A identidade da miséria marca também esta peça. "Me vistió la pobreza / me lamió el cuerpo el río. / De pies a cabeza, / pasto fui del rocío". Refere-se a sua infância, mas evocada desde a última juventude. " ’Las abarcas desiertas’ eram aquelas em que os reis magos nunca deixavam nada. Há um ressentimento, um protesto social profundo nestes versos", acredita Joan Manuel Serrat. (Nota do tradutor: “abarca”, segundo o Dicionário da Real Academia de la Lengua Española, 22ª ed., significa “calçado de couro cru que cobre apenas a planta dos pés, amarrado ao redor e seguro com cordas ou correias sobre seu dorso e o tornozelo". Ou seja, uma espécie de alpercata).

12. Sólo quien ama vuela. Uma nova viagem fora dos muros da prisão. A ansiedade que lhe produz o querer e o pode fazer. Somente voando com a imaginação de sua escritura encontra-se livre. "Somente assim pode sair, sentir-se de outra maneira", comenta o músico.

13. Hijo de la luz y de la sombra. Aqui foi necessário fazer um trabalho fino. Trata-se de um poema tríptico do qual Serrat quis captar a essência. "Havia que montar uma canção que transmitisse o aroma", comenta. O do amor radical, desesperado, que fecha como um círculo o que se abriu com o disco de 1972. Uma evocação ao seio onde tudo nasce: "Eres la noche esposa / y yo soy el mediodía... Caudalosa mujer / en tu vientre me entierro". -

‘Hijo de la luz y de la sombra’. Joan Manuel Serrat. Sony / BMG. Sai à venda na próxima terça-feira dia 23. A turnê começará dia 27 de março em Elche (Alicante). http://www.jmserrat.com/.
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