terça-feira, dezembro 28, 2004

Amigos de hoje e de sempre



Para o Josélio,
amigo de todas as horas,
irmão de sempre.

Eu sempre fui um homem de muitos amigos. Sim, tive muita sorte na amizade. Tive amigos de todos os tipos, baixinhos, altos, gordos, magros, brancos, negros, amarelos, vermelhos, ricos, pobres, casados, solteiros, velhos, jovens, e bêbados, principalmente na adolescência. Creio que cada um deles estará se identificando ao ler esse texto. O digo que já tive porque atualmente descobri que a verdadeira amizade é algo raro, especial e muito, mas muito mesmo, difícil. Não que eu tenha sofrido grandes decepções, causadas pelos meus amigos, mas porque a verdadeira amizade amadurece com o passar do tempo e se purifica como um bom destilado.

Alguns conheci na infância, e para ser mais exato no jardim-de-infância. Mas tarde, reconquistaram-me na idade adulta, sem nunca perder a inocência de estar bem na minha companhia sem nada me cobrar. Sem nada exigir além do bom papo no cafezinho apressado do meio-dia. Outros, conheci na idade adulta, no meio das infindáveis obrigações sociais e pelos caminhos insondáveis da providência. São amigos novos com quem desfruto de alegre camaradagem e confiança, como se nos conhecêssemos desde sempre. São forças novas que me ajudam na difícil tarefa de viver. Sem saber nada deles eu não poderia continuar a ser o que eu sou.

Existem também amigos fundamentais, que me ajudaram em momentos de grande necessidade e solidão, em terras distantes, que se mostraram verdadeiramente amigos sem nada almejar. São anjos da guarda reais, verdadeiros espíritos de luz no meio da escuridão das dificuldades humanas.

Mas nada é pior que os velhos amigos, esses amigos de toda vida, que nos conhecem mais que nós mesmos e sabem de todo, mais todo mesmo, o nosso passado. Sabem de todos os nossos erros infantis e de todas as nossas ressacas morais. Esses amigos deveriam ser trancados num baú, pra abrir somente em caso de um ataque nuclear. São piores que uma dor de barriga numa festa de quinze anos. São tão verdadeiros e sem nenhum critério de sensatez que nos deixam de cara no chão diante de todos. Por todas essas qualidades, não há nada mais ridículo que os velhos amigos. Por outro lado, os velhos amigos são a única coisa que podemos imaginar como uma família, mesmo não o sendo. Os velhos amigos representam o sal de toda amizade.

Otto Lara Resende, um mineiro que entendia muito de amizade, escreveu certa vez seu método de escolha da amizade: “Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo”.

O grande poeta Fernando Pessoa, não se referindo aos amigos mais sim aos “conhecidos”, o que representa uma grande diferença, afirmou, com sua grafia lusitana da época, no seu “Poema em linha recta”: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. (...) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo, nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...” Para concluir: “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. (...) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”

Jorge Amado escreveu no seu “Navegação de cabotagem” que levava dentro de si um cemitério particular, onde enterrava aqueles que haviam traído sua confiança, “na cova rasa da salafrarice”. Era o único lugar onde poderia depositar essas infames pessoas, sem deixar de cumprimentá-las ao encontrar, nem lhes negar um aperto de mão. Mas que fique bem claro, que ao proceder desta maneira, elas já estavam mortas e enterradas. Quanta sabedoria tinha Jorge Amado.


Eu, por minha parte, tenho amigos de todos os tipos. Alguns estão mortos e enterrados, mas não sabem. Outros são campeões em tudo, sem nunca terem cometido uma atitude vil, e os por isso mesmo os desprezo do fundo do meu peito. A maioria deles, para minha sorte, são como os amigos do Otto Lara. São loucos e sérios, metade bobeira e metade seriedade, e fazem de mim louco e santo. São pessoas, como diria Jorge Luis Borges, que não se levam a sério demasiado e por isso mesmo podem sorrir de si mesmas e dos outros. São amigos, e isto basta.

segunda-feira, dezembro 20, 2004

A busca da felicidade



Yo no necesito tiempo
Para saber cómo eres:
Conocerse es el relámpago.
(...)
eres tan antigua mía,
te conozco tan de tiempo,
que en tu amor cierro los ojos,
y camino sin errar,
a ciegas, sin pedir nada
a esa luz lenta y segura.

Pedro Salinas,
em “La voz a ti debida”, 1933.


A felicidade sempre foi a meta de todos os seres humanos, dos mais cultos aos mais ignorantes. E os diferentes modelos e fórmulas para se encontrar a felicidade acompanharam o homem em toda sua trajetória, nos mais diversos momentos e lugares. Muitos já escreveram sobre a felicidade. Rubens Ricupero, em memorável artigo publicado na Folha de São Paulo de 4 de janeiro de 2004, traça um maravilhoso levantamento histórico e literário da felicidade ao longo dos tempos. Como afirmou o filósofo Ortega y Gasset, “o programa da vida feliz quase não variou ao largo da vida humana”.

Sempre me fascinou na Declaração de Independência dos EUA, a afirmação do direito de buscar a felicidade. Esse texto, de 4 de julho de 1776, declara: “Consideramos 'de per si' evidentes as verdades seguintes: que todos os homens são criaturas iguais; que são dotados pelo seu Criador com certos direitos inalienáveis; e que, entre estes, se encontram a vida, a liberdade e a busca da felicidade”. A expressão é atribuída a Thomas Jefferson, mas era idéia comum naquela época de que a primordial função do bom governo seria a de cuidar da vida e da felicidade humanas.

Antes porém, na Declaração de Direitos de Virgínia, de 16 de junho de 1776, já se afirmava esta função estatal, ao lado do direito de rebelião: “O governo existe e deve existir para o bem comum, a proteção e a segurança do povo, nação ou comunidade; de todos os modos e formas de governo o melhor é o que é capaz de produzir a maior grau de felicidade e segurança e está mais efizcamente organizado contra o perigo de má administração; e, sempre que qualquer governo se mostre inadequado ou contrário a estes fins, a maioría da comunidade tem o direito incontestável, inalienável e irrevogável de o reformar, modificar ou abolir da maneira que for julgada mais conducente à felicidade geral”. Norberto Bobbio, no seu “Dicionário de Política”, afirma que a felicidade pública “é o valor mais invocado pela ética utilitarista, definido classicamente por J. Bentham como 'a maior felicidade para a maioria'”.

A busca da felicidade humana era um dos temas recorrentes da filosofia socrática, e muitos de seus discípulos elaboraram escolas filosóficas que partiram das interpretaçöes de seus ensinamentos. Assim, encontramos esta preocupação tanto em Platão, quanto em Aristóteles – que no livro “Ética a Nicômano” percorre vários caminhos para esclarecer o tema da felicidade. Mas é no pensamento dos cínicos, epicureus e estóicos que encontramos o maior destaque sobre o tema. Para os cínicos, “a verdadeira felicidade não depende de fatores externos como o luxo, o poder político e a boa saúde. Para eles, a verdadeira felicidade consistia em se libertar dessas coisas casuais e efêmeras. E justamente porque a felicidade não estava nessas coisas ela podia ser alcançada por todos. E, uma vez alcançada, não podia mais ser perdida”. Os estóicos, aproveitando muito do pensamento cínico, acreditavam que a felicidade, como tudo que acontece na vida humana, não depende do homem, e sim das imutáveis leis naturais. Diante de tal atitude, ao homem caberia, tão somente, aceitar com tranquilidade o que o destino lhe trouxer. Diferentemente dos estóicos, os epicureus acreditavam na possibilidade do homem planejar sua vida. A felicidade estaria nos prazeres da vida, entendendo estes não apenas como a satisfação pelos sentidos. Epicuro afirmou que “aquele que não considera o que tem como a riqueza maior, é um infeliz, mesmo que seja dono do mundo”. Por fim, Sêneca afirmava que “felicidade é não necessitar dela”.

Na idade moderna, Rosseau, mesmo não definindo a felicidade, não duvida que todos os seres humanos a buscam. Na sua obra “Emílio”, por exemplo, afirma que a felicidade está para além de nós, sendo melhor nos contentarmos e acomodarmos. Mas arremata: “É necessário ser feliz, caro Emílio: é o fim de todo ser sensível; é o primeiro desejo que nos imprime a natureza e o único que não nos abandona jamais”.

Montesquieu escreveu: “se nos bastasse com ser felizes, logo o conseguiríamos; mas queremos ser mais felizes que os demais, e isso é muito difícil, tanto mais quanto que consideramos àqueles muito mais felizes do que em realidade são”. Para Voltaire “a felicidade nos espera em algum lugar, com a condição de não irmos buscá-la”. Goethe afirma que “somente é feliz e grande aquele que para chegar a ser algo não necessita nem mandar nem obedecer”.

Para Flaubert, a felicidade estava em “ser burro, egoísta e ter boa saúde”, sendo que tudo estaría perdido se nos faltasse a primeira condição. Outro não é o pensamento de Leopardi ao afirmar que “a felicidade está na ignorância da verdade” e de Anatole France ao escrever que “a vida nos ensina que não podemos ser felizes senão ao preço de certa ignorância”. Enfim, como afirmou o filósofo Fernando Savater, “nunca esteve totalmente esclarecido se o segredo da felicidade consiste ou não em ser completamente imbecil”.

Para Hegel, felicidade é a “busca do reconhecimento e aprovação dos outros, do aplauso e do elogio de nossos semelhantes”. Para Saint-Just, revolucionário francês, a felicidade era “um arado, um campo e uma choupana ao abrigo do fisco”. O escritor estadunidense Mark Twain escreveu que “se um homem nasceu com um caráter não dotado para a felicidade, nada lhe pode fazer feliz; se nasceu para ser feliz, nada lhe pode fazer desgraçado”. Para Emerson, “a felicidade consiste em preencher as horas e não deixar um resquício para que penetre o arrependimento ou a a provação”. Lord Byron, por sua vez, disse que “sempre se interpöe algo entre nós e o que creemos nossa felicidade”. Para Nietzsche, “a felicidade do homem tem por nome: Eu quero”.

A religião também nos ensina os caminhos da felicidade. Para santo Agostinho o homem, criado para Deus, somente nele encontraia repouso. São Francisco ensina que a perfeita alegría “é ser vilipendiado, rejeitado, espancado pelos seus, atirado à neve, com fome e frio”. Buda, considerando que a velhice, a dor, a doença e a morte são inevitáveis, afirmou que “o melhor é buscar o nirvana, a extinção, o apagar de todo desejo e da consciência individual”. O jesuíta espanhol Baltasar Gracián, autor de “A Arte da Prudência”, publicado em 1647, escreveu: “A virtude é o elo de todas as perfeiçöes, é o centro da felicidade. Ela torna o homem prudente, discreto, sagaz, sábio, valente, moderado, íntegro, feliz, digno de aplauso, verdadeiro, ou seja, um herói em tudo. Três 'esses' trazem a felicidade: sábio, são e santo”.

O pensador britânico Bertrand Russel, no seu livro “A conquista da felicidade”, afirma que “o homem feliz é o que vive objetivamente, o que é livre em seus afetos e tem amplos interesses, o que se assegura a felicidade por meio destes interessses e afetos que, por sua vez, o convertem a ele em objeto do interesse e o afeto de muitos outros. Que outros te amem é uma causa importante de felicidade”.

Mas, em matéria de felicidade, nada melhor que ouvir a opinião dos poetas. O grande poeta da América, Walt Whitman, louvando o momento presente escreveu: “A felicidade, o conhecimento, não estão noutro lugar, senão neste, não em outro momento, senão neste”.

Por tudo, o momento de ser feliz é agora. Não amanhã, ou depois. Desejo a todos meus heróicos leitores muitas felicidades neste Natal e meus melhores desejos para o ano que se aproxima. Que a felicidade esteja hoje em cada um de nós, com todos os seus sintomas, com todo o desejo de cantar na chuva, de dizer olá pro inimigo e sorrir de todos os nossos medos infantis. E que nossa caminhada na busca da felicidade seja muito bem acompanhada, porque “é impossível ser feliz sozinho”. Quanto a mim, vale os versos do poeta chileno Pablo Neruda, nas “Odes elementales”: “Desta vez me deixa ser feliz. Nada aconteceu a ninguém, não estou em parte alguma, simplesmente sucede que sou feliz pelos quatro costados do coração, andando, dormindo ou escrevendo. O que eu posso fazer, sou feliz”.

quarta-feira, dezembro 08, 2004

O "chakra"de Bhopal

O homem e sua segurança
devem constituir a preocupação fundamental
de toda aventura tecnológica.
Nunca se esqueçam disto
quando estiverem metidos
nos seus planos e equações.

Albert Einstein

Era meia-noite, de 2 de dezembro de 1984, quando um vazamento de gases tóxicos da multinacional estadunidense Union Carbide matou entre dezesseis e trinta mil pessoas, além de ferir mais de quinhentas mil, na cidade de Bhopal, capital do estado de Madhya Pradesh, na Índia. As nuvens brancas da morte despertaram os habitantes de Bhopal para seu pior pesadelo e transformaram aquela localidade outrora denominada “cidade da alegria” numa cidade de funerais. A roda do destino, a “chakra”, havia definitivamente parado em Bhopal.

Vinte anos depois daquela trágica noite de domingo, a contaminação provocada pelo vazamento - cujo principal componente era o MIC (Isocianato de metila), altamente explosivo acima de zero grau centígrado e usado na produção do agrotóxico Sevin - continua arruinando as vidas de milhares de pessoas pobres, vítimas indefesas da ganância e irresponsabilidade da indústria química. É o que se acostumou denominar de “injustiça ambiental”. Filhos de pessoas que inalaram o composto letal tiveram seu crescimento atrofiado. A taxa de aborto na região é sete vezes maior que a média da Índia. Em Bhopal, até hoje o número de pacientes com problemas respiratórios, câncer de pulmão e outras doenças crônicas é maior que em qualquer outra parte daquele país.

A Union Carbide pagou US$ 470 milhões ao governo da Índia em 989, dos quais US$ 330 milhões continuam retidos nos cofres estatais. Estima-se que a batalha judicial contra a empresa lhe obrigaria a pagar US$ 30 bilhões a título de indenização às vítimas, enquanto seu patrimônio era estimado em 1983 sobre os US$ 10,3 bilhões. Os acionistas da empresa também entraram na justiça americana com uma demanda estimada em quase US$ 1 bilhão, pela queda de 29% no valor das ações da multinacional depois do acidente. Todavia seguem esperando por conclusão demandas judiciais nos EUA e na Índia.

As tragédias também trazem seu lado paradoxal. Vinte anos depois do maior acidente químico da história, a BBC entrevistou a um falso porta voz da empresa Dow Chemicals, atual proprietária da Union Carbide, anunciando a responsabilidade da empresa sobre as indenizações, prometendo a criação de um fundo milionário para ressarcimento das vítimas. Tudo não passou de um engano, pois a empresa informou que não possui nenhum empregado com o nome de Jude Finisterra. Nova angústia para as vítimas que esperam há anos por uma indenização que cubra pelo menos com os gastos médicos.

O incidente de Bhopal ocorreu duas semanas depois da morte de quase quinhentas pessoas na localidade mexicana de San Juanico, vítimas de um acidente químico. No início deste mês ao redor de cinco mil pessoas foram retiradas às pressas da cidade chinesa de Qujing, depois de um vazamento de gás natural na região. Entretanto, o maior acidente com gás na China ocorreu em dezembro de 2003, quando várias explosões provocaram grandes nuvens de gás e mataram 243 pessoas na província de Chongqing, no Sudoeste do país.

A Union Carbide abandonou Bhopal há dezesseis anos. Deixou para trás milhares de toneladas de produtos químicos que contaminaram a água da cidade, que apresenta atualmente nível de contaminação quinhentas vezes maior que o máximo recomendado pela Organização Mundial da Saúde – OMS. A empresa se foi. Ficou a desgraça daqueles que nunca tiveram nada, além da esperança. Deviam estar loucos todos aqueles deuses envelhecidos da Índia, deviam estar...