Eu sempre fui um homem de muitos amigos. Sim, tive muita sorte na amizade. Tive amigos de todos os tipos, baixinhos, altos, gordos, magros, brancos, negros, amarelos, vermelhos, ricos, pobres, casados, solteiros, velhos, jovens, e bêbados, principalmente na adolescência. Creio que cada um deles estará se identificando ao ler esse texto. O digo que já tive porque atualmente descobri que a verdadeira amizade é algo raro, especial e muito, mas muito mesmo, difícil. Não que eu tenha sofrido grandes decepções, causadas pelos meus amigos, mas porque a verdadeira amizade amadurece com o passar do tempo e se purifica como um bom destilado.
Alguns conheci na infância, e para ser mais exato no jardim-de-infância. Mas tarde, reconquistaram-me na idade adulta, sem nunca perder a inocência de estar bem na minha companhia sem nada me cobrar. Sem nada exigir além do bom papo no cafezinho apressado do meio-dia. Outros, conheci na idade adulta, no meio das infindáveis obrigações sociais e pelos caminhos insondáveis da providência. São amigos novos com quem desfruto de alegre camaradagem e confiança, como se nos conhecêssemos desde sempre. São forças novas que me ajudam na difícil tarefa de viver. Sem saber nada deles eu não poderia continuar a ser o que eu sou.
Existem também amigos fundamentais, que me ajudaram em momentos de grande necessidade e solidão, em terras distantes, que se mostraram verdadeiramente amigos sem nada almejar. São anjos da guarda reais, verdadeiros espíritos de luz no meio da escuridão das dificuldades humanas.
Mas nada é pior que os velhos amigos, esses amigos de toda vida, que nos conhecem mais que nós mesmos e sabem de todo, mais todo mesmo, o nosso passado. Sabem de todos os nossos erros infantis e de todas as nossas ressacas morais. Esses amigos deveriam ser trancados num baú, pra abrir somente em caso de um ataque nuclear. São piores que uma dor de barriga numa festa de quinze anos. São tão verdadeiros e sem nenhum critério de sensatez que nos deixam de cara no chão diante de todos. Por todas essas qualidades, não há nada mais ridículo que os velhos amigos. Por outro lado, os velhos amigos são a única coisa que podemos imaginar como uma família, mesmo não o sendo. Os velhos amigos representam o sal de toda amizade.
Otto Lara Resende, um mineiro que entendia muito de amizade, escreveu certa vez seu método de escolha da amizade: “Meus amigos são todos assim: metade loucura, outra metade santidade. Escolho-os não pela pele, mas pela pupila, que tem que ter brilho questionador e tonalidade inquietante. Fico com aqueles que fazem de mim louco e santo”.
O grande poeta Fernando Pessoa, não se referindo aos amigos mais sim aos “conhecidos”, o que representa uma grande diferença, afirmou, com sua grafia lusitana da época, no seu “Poema em linha recta”: “Nunca conheci quem tivesse levado porrada. Todos os meus conhecidos têm sido campeões em tudo. (...) Toda a gente que eu conheço e que fala comigo, nunca teve um acto ridículo, nunca sofreu enxovalho, nunca foi senão príncipe – todos eles príncipes – na vida...” Para concluir: “Quem me dera ouvir de alguém a voz humana que confessasse não um pecado, mas uma infâmia; Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia! Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam. (...) Arre, estou farto de semideuses! Onde é que há gente no mundo? Então sou só eu que é vil e errôneo nesta terra?”
Jorge Amado escreveu no seu “Navegação de cabotagem” que levava dentro de si um cemitério particular, onde enterrava aqueles que haviam traído sua confiança, “na cova rasa da salafrarice”. Era o único lugar onde poderia depositar essas infames pessoas, sem deixar de cumprimentá-las ao encontrar, nem lhes negar um aperto de mão. Mas que fique bem claro, que ao proceder desta maneira, elas já estavam mortas e enterradas. Quanta sabedoria tinha Jorge Amado.
Eu, por minha parte, tenho amigos de todos os tipos. Alguns estão mortos e enterrados, mas não sabem. Outros são campeões em tudo, sem nunca terem cometido uma atitude vil, e os por isso mesmo os desprezo do fundo do meu peito. A maioria deles, para minha sorte, são como os amigos do Otto Lara. São loucos e sérios, metade bobeira e metade seriedade, e fazem de mim louco e santo. São pessoas, como diria Jorge Luis Borges, que não se levam a sério demasiado e por isso mesmo podem sorrir de si mesmas e dos outros. São amigos, e isto basta.