quarta-feira, fevereiro 25, 2004

O Renascimento iraniano


A Pérsia é uma civilização de mais de 3 mil anos, deitada sobre placas tectônicas em constante movimentação, o que ocasiona constantes terremotos como o ocorrido em 26 de dezembro passado que matou milhares de pessoas. Desde 1934 denomina-se Irã, sua capital Teerã possui modernos prédios construídos de acordo com as normas internacionais antiterremoto. Entretanto, o país sempre viveu sobre a ameaça constante de terremotos não apenas físicos, mas principalmente políticos.

As eleições para o Parlamento do Irã do ultimo dia 21 de fevereiro forma marcadas pelo boicote dos reformistas e pelo baixo comparecimento às urnas. O boicote foi organizado pelos reformistas em protesto contra o veto imposto pelo Conselho de Vigilância – formado por membros islâmicos conservadores responsáveis pela guarda da Constituição - às candidaturas de 2.500 reformistas, muitos deles deputados que tentavam a reeleição.

O ‘Conselho de Vigilância da Constituição’, de acordo com o art. 98 da Constituição Iraniana , é o intérprete da mesma, além de responsável por aprovar as leis emanadas da Assembléia, com relação aos princípios religiosos do Islã. Segundo o art, 91 da Constituição Iraniana o mesmo é composto por seis “jurisprudentes qualificados bem versados na jurisprudência islâmica e cientes das virtudes e necessidades da época” e seis “advogados de vários ramos de leis dentre juristas muçulmanos”.

O país está dividido entre os seguidores do aiatolá Ali Khamenei, conservador líder supremo do país e contrário às reformas, e o Presidente Mohammad Khatami, líder do movimento reformista. O boicote às urnas foi pregado pelos reformistas, que liderados pelo Presidente Mohammad Khatami detinham 70% do Parlamento desde o ano 2000. Segundo informações do Jornal do Brasil, apenas 43,3% dos 46 milhões de eleitores havia comparecido para votar, quando os reformistas esperavam o comparecimento de apenas 20%. A população iraniana é em sua maioria jovem, pois 70% tem menos de 30 anos, e mais de 150 mil universitários já abandonaram o país.

A antiga Pérsia surge no século XX através da dinastia Pahlevi em 1925. Durante a II Guerra Mundial o país apóia a Alemanha nazista, o que acarreta a invasão por tropas britânicas e soviéticas, e a abdicação do Xá em favor do filho Reza Pahlevi. Em 1953, depois de nacionalizar as companhias de petróleo, o Primeiro-Ministro Mohammed Mossadegh é deposto em um golpe planejado e dirigido pelos serviços secretos dos EUA e do Reino Unido. O Xá Reza Pahlevi assume ditatorialmente o poder e leva o país a uma modernização pro Ocidente, que provoca a ira das forças conservadoras islâmicas lideradas pelo aiatolá Ruhollah Khomeini que retorna ao Irã em 1979 e estabelece ali uma República islâmica. Neste mesmo ano ocorre uma grave crise com os EUA, causada pela invasão da embaixada estadunidense em Teerã, onde 64 cidadãos americanos foram feitos reféns e somente libertados em 1981. A crise dos reféns contribuiu para a derrota do democrata Jimmy Carter na sua candidatura à reeleição a Casa Branca e à vitória do republicano Ronald Reagan. Era o início da ascensão do neoliberalismo.

A Revolução Islâmica de 1979, é considerada pelo historiador britânico Eric Hobsbawm como “a maior de todas as revoluções da década de 1970”, e “entrará na história como uma das grandes revoluções sociais do século XX”.

Desde então, 1979, o Irã é uma República Islâmica, e somente após a morte do aiatolá Khomeini em 1989 inicia um processo de abertura e reaproximação com o Ocidente. A economia iraniana é um fracasso, muito embora desde 2001 cresça num percentual superior a 5% ao ano, a capacidade aquisitiva é inferior às taxas de 1978, último ano de governo do Xá, os produtos básicos e a gasolina estão subvencionados pelo Estado.

Para a ex-líder estudantil e atual jornalista Susan Akbarpour, que vive nos EUA desde 1997, “o Estado e a religião nunca formaram uma aliança frutífera”, e portanto o regime islâmico não pode durar mais tempo no Irã. Pare ela, o momento atual corresponde no Irã ao “Renascimento” ocorrido na Europa durante os séculos XV e XVI.

Quando Heródoto realiza sua famosa viagem a Pérsia, o interesse por aquele país já existia na aventura épica contada na Ilíada, de Homero. A Pérsia aparece no imaginário Ocidental, desde a Antiguidade, como um antagonista ao modelo ocidental representado pela civilização Helena e, ao mesmo tempo, como um foco de atração irresistível. A atual situação política do Irã deve evoluir para a diminuição do poder do clero islâmico em benefício da sociedade civil organizada. Entretanto, tal processo deve acontecer sem intervenção de potencias ocidentais, apesar de toda atração irresistível, apesar da atração que exerce o petróleo iraniano.

segunda-feira, fevereiro 16, 2004

Laicidade e religião na França


Em 1894, o capitão Alfred Dreyfus foi acusado de traição ao Estado francês. Ele era judeu. Naquela época, a reação anti-semita foi atribuída à Igreja Católica, ao Exército francês e à direita do governo. O Caso Dreyfus dividiu a França com relação à questão religiosa e teve como conseqüência a promulgação da lei de separação entre Igreja e Estado de 1905. É claro que Dreyfus foi inocentado e reincorporado ao Exército em 1906, mas o caso serviu de exemplo sobre a complexidade da questão religiosa naquele país, e o anti-semitismo, que seria recuperado quando da análise do colaboracionismo nazista da República de Vichy.

A questão religiosa sempre foi um assunto historicamente polêmico na França, primeiro Estado nacional a adotar o catolicismo como doutrina oficial, e nos anos 80 o debate reacendeu através da medida do então governo socialista de diminuir a subvenção estatal aos estabelecimentos católicos de ensino.

Então já podemos imaginar a temperatura elevada do atual debate naquele país, quando o conservador Presidente Jacques Chirac propôs uma lei, de apenas três artigos, que proíbe o uso ostensivo de sinais religiosos nas escolas públicas, o Conselho de Ministros muito a contragosto aprovou e o Primeiro Ministro Jean Pierre Raffarin prometeu levá-la pessoalmente à Assembléia Nacional, que a aprovou no último 10 de fevereiro.

A medida pretende defender a escola pública contra o véu islâmico - hiyab, o kipa judeu ou o crucifixo cristão, desde que “manifestamente de dimensão excessiva”, conforme afirmou Jacques Chirac. Evitando conflitos, xenofobia, racismo e segregação, a norma proposta pretende defender o Estado laico, grande herança da França Republicana, segundo o executivo francês. As opiniões se dividem entre os que acreditam que a proibição reforçara o respeito por todas as religiões e a supremacia da laicidade do Estado Francês, e aqueles que a olham como uma violação da liberdade religiosa.

Os protestos contra a nova lei se fizeram sentir de todos os lados – em janeiro 20 mil pessoas se reuniram em Paris para protestar contra a proposta governamental -, sendo que até o Papa se manifestou contrário, ao afirmar que “algumas nações européias” põem em perigo a liberdade religiosa.

Os hindus sikhs protestaram pelo direito de usar seus turbantes, alegando ante o governo francês que como estão proibidos de cortar os cabelos, seria apenas um adereço e não um símbolo religioso.

Os mulçumanos franceses vêem nessa proposta de lei uma medida discriminatória contra o islamismo e não em prol da republicana laicidade, no que são seguidos por muitos intelectuais. A maioria dos mulçumanos franceses é pobre e não pode pagar escola privada para seus filhos, o que os obriga a estudar em escolas públicas. São majoritariamente de origem árabe. Os árabes são em sua maioria muçulmanos, ou islâmicos, e compõem um coletivo de quase 285 milhões de pessoas, ou seja, 5% da população mundial.

Para o pesquisador de “Antropologia do mundo árabe” François Pouillon, em recente entrevista no Jornal do Brasil, a proibição evita conflitos futuros, enquanto que os atuais defensores da lei são majoritariamente racistas, sem qualquer preocupação com os problemas sociais ou a questão da laicidade.

As conseqüências políticas também não tardaram em aparecer, e a mais evidente é o fim da lua-de-mel que houve entre a França de Chirac e os Estados Árabes, por haver liderado o protesto internacional contra a Guerra do Iraque.

O anacronismo do debate está em que a divisão entre Estado e religião parecia solucionada e não demonstrava ser ressuscitada, com o perdão da palavra, com nova roupagem no século 21.

Muito mais realista é a visão da população francesa que no seu conjunto aprova a nova legislação, mas 43% da mesma vê como desculpa do governo o debate sobre a laicidade da escola pública, para evitar o verdadeiro debate sobre o desemprego e outros problemas econômicos e sociais. De maneira que o debate está servido, e nem todos agora poderão dizer como naquele velho ditado judeu: “Felizes como Deus em França”.

segunda-feira, fevereiro 09, 2004

A Gripe do frango vira Pandemia


Quando os jornais do mundo anunciaram esta semana a descoberta de que a Gripe Espanhola, ou influenza, que matou mais de 20 milhões de pessoas em 1918, foi causada pela mutação do vírus da gripe das aves para a gripe humana, surge a confirmação de que a gripe das aves chegou aos EUA, determinando a quarentena e o sacrifício de 12 mil frangos em uma fazenda no Condado de Kent, no estado norte-americano de Delaware, no ultimo sábado. Apesar do vírus encontrado nos EUA ser uma variante do vírus que assola o Sudeste Asiático, as autoridades estadunidenses estão em alerta máximo para o perigo de contágio da Gripe do Frango, que nos levaria à primeira Pandemia do século 21.

A reação internacional foi imediata e o Japão, Malásia, Singapura e a Coréia do Sul já anunciaram a proibição de importação de produtos avícolas dos EUA. O Japão importou mais de 500 mil toneladas de carne de aves dos EUA em 2002. O benefício para os produtores brasileiros é evidente, e o país que já vende a metade do frango consumido em Singapura, recebeu a noticia de que a Coréia do Sul comprará 50 mil toneladas de frango brasileiro.

Clinicamente falando a Gripe do Frango “é uma patologia viral infecciosa das aves”. Desde 1997 já matou 20 pessoas. Doença grave, mortal e de uma rapidez sem precedentes, se hospeda em pássaros migratórios e destes se transmite às aves domésticas, especialmente a frangos e perus. Ninguém possui anticorpos para essa nova estirpe de vírus. A doença foi detectada apela primeira vez há mais de 100 anos na Itália. O contagio humano foi registrado pela primeira vez em Hong Kong em 1997, com 18 casos e seis mortes confirmadas pela OMS.

A princípio, a doença não se transmite de homem para homem, e sim das aves para o homem. Entretanto, caso o vírus da gripe do frango troque material genético com o vírus da gripe humana pode gerar uma pandemia tão catastrófica como foi a gripe espanhola no começo do século passado, pois poderia resultar em um único vírus a agressividade do vírus das aves e a rapidez de transmissão do vírus da gripe humana. Desde novembro de 2003 uma epidemia de gripe atinge as granjas do Sudeste Asiático, já atingindo a 10 países da região, e segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentos e Agricultura – FAO, já foram sacrificadas 50 milhões de aves em toda Ásia. A China, apontada como epicentro da epidemia, anunciou no princípio do surto que foram encontrados patos mortos contaminados em três regiões do país. Como os patos são resistentes ao vírus H5N1, se acredita que o vírus sofreu uma mutação, tornando-se assim mais “virulento”.

Através do vírus H5N1 e suas variações H7 e H9 menos danosas ao homem, a Gripe do Frango já atingiu 10 países asiáticos, como a Coréia do Sul – onde o vírus foi detectado em dezembro de 2003, Japão, Taiwan, Laos, Camboja, e na Tailândia, onde o governo tentou esconder a epidemia. Quarto maior produtor de frangos, a Tailândia já contabilizou cinco mortes comprovadamente atribuídas à Gripe do Frango e abateu 26 milhões de aves, esperando eliminar a doença nos próximos dias. A Indonésia admitiu recentemente a possibilidade de não sacrificar suas aves infectadas, mas vaciná-las, mesmo sabendo que a OMS não garanti a eficácia da vacina para as aves. A medida é condenada pela comunidade internacional, que atribui essa conduta ao pleito eleitoral que começa em março desse ano. O Vietnã é o país mais infectado, com 13 mortes e 2 milhões de aves sacrificadas, sendo que 57 das suas 64 províncias possuem casos confirmados da doença.

A China possui 13 das suas 31 províncias contaminadas pela enfermidade. A província chinesa de Guangdong, é apontada como origem do atual surto de Gripe do Frango, porque os pássaros selvagens – o reservatório natural do vírus da gripe - que vão do Hemisfério Norte ao Sul pousam naquela região. Considerada como um “caldeirão de cultura da gripe”, cientistas apontam Guangdong como origem da devastadora superpneumonia asiática, a síndrome respiratória aguda grave (Sars em inglês) em novembro de 2002, da Gripe Espanhola de 1918 e até mesmo da pandemia de Peste que assolou na Idade Média a Europa, que supostamente teria inicio em 1331 na China. Entretanto, outros pesquisadores afirmam que a Gripe Espanhola, ou influenza, pode ter sua origem na Costa Leste dos EUA.

Ninguém ainda sabe ao certo como o homem contrai a enfermidade, mas aparentemente a contaminação se faz pela falta de higiene, através de contato direto ou indireto com esterco de animais contaminados, pelo ar, pela comida, água, equipamentos e roupas contaminadas. Até agora, a rápida eliminação das aves contaminadas é recomendada pela OMS para prevenir que a epidemia se transforme numa pandemia.

A Organização Mundial da Saúde – OMS prometeu uma vacina para quatro semanas, mas o fato de o vírus haver-se mutado fez com que a instituição alterasse seu prognóstico para daqui a seis meses. Até agora a instituição não emitiu alerta para que as pessoas não viajem aos países afetados. O grande problema para se obter uma vacina contra o vírus está em que se usa embrião de frango para se fazer o medicamento. Entretanto, o vírus mata o embrião, porque é altamente letal para o frango. A saída pode estar no uso da vacina biomolecular, ainda em fase final de testes. A OMS possui um centro asiático em Manila, onde a Rede Mundial de Gripe prepara um protótipo geneticamente manipulado do vírus H5N1 para uma vacina. A União Européia, através do Comitê Permanente de Cadeia Alimentar, já proibiu a entrada de carnes e alimentos avícolas procedentes de vários países asiáticos. O Brasil também, e os pesquisadores do Laboratório de Vírus Respiratórios do Instituto Adolfo Lutz, em São Paulo, já estudam maneiras de combater a doença, caso entre no país. Além do Instituto Adolfo Lutz, o Brasil possui dois outros centros ligados à rede ONU de vigilância da gripe, que são o Instituto Evandro Chagas, em Belém, e a Fundação Osvaldo Cruz, no Rio de Janeiro.

Dentre as facilidades encontradas pela Gripe do Frango em sua trajetória de disseminação pelo mundo, podemos apontar a rapidez do transporte de pessoas e mercadorias, bem como o sucateamento dos sistemas de saúde pública, elementos típicos do mundo globalizado, e glorificados pela política neoliberal.