Em 1894, o capitão Alfred Dreyfus foi acusado de traição ao Estado francês. Ele era judeu. Naquela época, a reação anti-semita foi atribuída à Igreja Católica, ao Exército francês e à direita do governo. O Caso Dreyfus dividiu a França com relação à questão religiosa e teve como conseqüência a promulgação da lei de separação entre Igreja e Estado de 1905. É claro que Dreyfus foi inocentado e reincorporado ao Exército em 1906, mas o caso serviu de exemplo sobre a complexidade da questão religiosa naquele país, e o anti-semitismo, que seria recuperado quando da análise do colaboracionismo nazista da República de Vichy.
A questão religiosa sempre foi um assunto historicamente polêmico na França, primeiro Estado nacional a adotar o catolicismo como doutrina oficial, e nos anos 80 o debate reacendeu através da medida do então governo socialista de diminuir a subvenção estatal aos estabelecimentos católicos de ensino.
Então já podemos imaginar a temperatura elevada do atual debate naquele país, quando o conservador Presidente Jacques Chirac propôs uma lei, de apenas três artigos, que proíbe o uso ostensivo de sinais religiosos nas escolas públicas, o Conselho de Ministros muito a contragosto aprovou e o Primeiro Ministro Jean Pierre Raffarin prometeu levá-la pessoalmente à Assembléia Nacional, que a aprovou no último 10 de fevereiro.
A medida pretende defender a escola pública contra o véu islâmico - hiyab, o kipa judeu ou o crucifixo cristão, desde que “manifestamente de dimensão excessiva”, conforme afirmou Jacques Chirac. Evitando conflitos, xenofobia, racismo e segregação, a norma proposta pretende defender o Estado laico, grande herança da França Republicana, segundo o executivo francês. As opiniões se dividem entre os que acreditam que a proibição reforçara o respeito por todas as religiões e a supremacia da laicidade do Estado Francês, e aqueles que a olham como uma violação da liberdade religiosa.
Os protestos contra a nova lei se fizeram sentir de todos os lados – em janeiro 20 mil pessoas se reuniram em Paris para protestar contra a proposta governamental -, sendo que até o Papa se manifestou contrário, ao afirmar que “algumas nações européias” põem em perigo a liberdade religiosa.
Os hindus sikhs protestaram pelo direito de usar seus turbantes, alegando ante o governo francês que como estão proibidos de cortar os cabelos, seria apenas um adereço e não um símbolo religioso.
Os mulçumanos franceses vêem nessa proposta de lei uma medida discriminatória contra o islamismo e não em prol da republicana laicidade, no que são seguidos por muitos intelectuais. A maioria dos mulçumanos franceses é pobre e não pode pagar escola privada para seus filhos, o que os obriga a estudar em escolas públicas. São majoritariamente de origem árabe. Os árabes são em sua maioria muçulmanos, ou islâmicos, e compõem um coletivo de quase 285 milhões de pessoas, ou seja, 5% da população mundial.
Para o pesquisador de “Antropologia do mundo árabe” François Pouillon, em recente entrevista no Jornal do Brasil, a proibição evita conflitos futuros, enquanto que os atuais defensores da lei são majoritariamente racistas, sem qualquer preocupação com os problemas sociais ou a questão da laicidade.
As conseqüências políticas também não tardaram em aparecer, e a mais evidente é o fim da lua-de-mel que houve entre a França de Chirac e os Estados Árabes, por haver liderado o protesto internacional contra a Guerra do Iraque.
O anacronismo do debate está em que a divisão entre Estado e religião parecia solucionada e não demonstrava ser ressuscitada, com o perdão da palavra, com nova roupagem no século 21.
Muito mais realista é a visão da população francesa que no seu conjunto aprova a nova legislação, mas 43% da mesma vê como desculpa do governo o debate sobre a laicidade da escola pública, para evitar o verdadeiro debate sobre o desemprego e outros problemas econômicos e sociais. De maneira que o debate está servido, e nem todos agora poderão dizer como naquele velho ditado judeu: “Felizes como Deus em França”.