segunda-feira, março 08, 2004

A Elite e a Nação

If neither foes nor loving friends can hurt you;
Yours is the Earth and everything that's in it,
And - which is more - you'll be a Man my son!.
Rudjiard Kippling

Salvando soldados americanos na Baía Hap, durante a guerra do Vietnã no ano de 1969, o tenente John Kerry serviu aos EUA como manda a tradição anglo-saxônica, aquela tradição de compromisso entre a nação e sua elite, da qual nós brasileiros nunca tivemos exemplo. Aquele tenente, hoje candidato democrata à Casa Branca pode perfeitamente falar em dever cumprido e em patriotismo, sem qualquer acusação de cinismo.

Durante a I Guerra Mundial, turmas inteiras das melhores universidades inglesas, notadamente Oxford e Cambridge, jamais retornaram às aulas. Deixaram suas vidas nos campos lamacentos da França. Mortos pelo Império. Vidas desperdiçadas em holocausto pela glória e honra da Rainha. Juventudes tolhidas no seu melhor momento, que jamais retornaram aos verdes campos da Inglaterra.


Como escreveu o historiador britânico Eric Hobsbawm em seu “Era dos Extremos”: “Os britânicos perderam uma geração – meio milhão de homens com menos de trinta anos -, notadamente entre suas classes altas, cujos rapazes, destinados como 'gentlemen' a ser os oficiais que davam o exemplo, marchavam para a batalha à frente de seus homens e em conseqüência eram ceifados primeiro. Um quarto dos alunos de Oxford e Cambridge com menos de 25 anos que serviam no exército britânico em 1914 foi morto”.


Em sentido oposto, verificamos a ausência de compromisso entre a elite e a nação na tradição Ibérica, que herdamos, já desbotada no viés Luso, e conseguimos piorar. A elite brasileira não possui qualquer compromisso ético, moral, social com a nação. São como elementos díspares, dissociados e que se repulsam, mantendo a nação sem uma elite, e uma elite sem nação.


Até mesmo na nossa esquecida província verificamos o fenômeno da dissociação entre a elite e a nação. De um lado uma elite formada em boas universidades – geralmente universidades de fora da província, ocupando altos e bem remunerados postos na administração provincial, produzindo uma medicina de qualidade respeitável, ganhando dinheiro público de maneira aparentemente honesta, pegando as crianças no Diocesano e no Dom Barreto – porque a educação religiosa ainda parece ser melhor que a escola pública e privada leiga, viajando aos EUA e a Europa em senis excursões para aposentados paulistas, levando os filhos adolescentes nos feriados e férias ao litoral – e tentando manter o controle sobre a curiosidade sensual que desperta nessa idade debaixo dos trópicos, e de alguma forma levando uma vida mediocremente ausente e “normal”. Vivendo, de maneira muito atrasada, a época do “señorito satisfecho”, segundo a clássica expressão de José Ortega y Gasset.


Do outro lado, a miséria. Exposta cruamente nos sinais vermelhos, uma miséria repugnante, nauseabunda, bastarda e negra parece não ter fim. E tomam conta das vias públicas, dos calçamentos e estradas que parecem ter sido construídas pelos piores engenheiros do país, dessa bagunça calorosa que se transformou a capital inundada por legiões de caras anônimas, que jamais foram vistas em alguma época no Diocesano. Milhares de seres humanos condenados a viver no país mais injusto do mundo, na província mais pobre da região mas atrasada, afastados de qualquer tênue sombra do quê venha a ser cidadania, “zombies” a espera do grito de mando do experto de mídia de plantão que os conduzirá a eleger a outro coitado bem intencionado – que a sua vez manterá os de sempre no seu governo de salvação provincial. Massa acima de tudo, dócil e miserável, enfim.


A elite do nosso país nunca conseguiu digerir essa raça denominada brasileira, que é mestiça, negra de cabelos louros nas orelhas, índia de olhos verdes, clara bronzeada e de lábios e narizes semitas. O distanciamento da nação não se ensina nas escolas, mas é a primeira lição que se aprende em casa. É no berço que se aprende a menosprezar os valores populares, a sorrir das festas folclóricas e a zombar da nação.


Ainda me lembro que quando criança, na Teresina de então, não era socialmente correto, ao menos no colégio dos padres jesuítas italianos, admitir a preferência pelo tradicional prato da culinária provincial “Maria Isabel”. Comer comida tradicional estava relegado às festas juninas e a esporádicas visitas às casas dos avôs no interior. A alimentação condicionava a classe social, e estava bem visto preferir de sobremesa um sorvete Gelatti a um pratinho de doce de leite caroçudo mandado vir de Oeiras e feito por mãos velhas que nunca conheceram o mar.


Nossa nação sempre foi superior à sua elite. A história demonstra que a nação sempre correspondeu quando foi convocada a defender esse país, fosse na Independência do decadente Império Português, fosse na orquestrada Guerra do Paraguai. A nação já deu seu sangue por tantos anos que até mesmo no país mais injusto do mundo, o que construímos todos os dias com nossa pequena e importante contribuição de trabalho, já é hora da sua elite se empenhar nessa construção. A elite é necessária, não por ser melhor que a nação, mas por ser a vanguarda da nação. E toda nação merece uma elite, com vergonha na cara.