sábado, janeiro 29, 2005

60 anos de Auschwitz



Tudo que o Mal precisa para triunfar
é que os bons homens nada façam.
Kofi Annan,
Secretário-Geral da ONU

O contrário do amor não é o ódio,
mas a indiferença.
O contrário da educação não é a ignorância,
mas a indiferença,
o contrário do belo não é o feio,
mas o indiferente,
o contrário da vida não é a morte,
mas a indiferença.
Elie Wiesel,
Prêmio Nobel da Paz de 1986,
sobrevivente dos campos de horror nazistas.



Genocídio no Aurélio significa “crime contra a humanidade, que consiste em, com o intuito de destruir, total ou parcialmente, um grupo nacional, étnico, racional ou religioso, cometer contra ele qualquer dos atos seguintes: matar membros seus; causar-lhes grave lesão à integridade física ou mental; submeter o grupo a condições de vida capazes de o destruir fisicamente, no todo ou em parte; adotar medidas que visem a evitar nascimentos no seio do grupo; realizar a transferência forçada de crianças dum grupo para outro.” Uma conceituação extensa, porém demasiado complexa.

Genocídio no mundo tem outro nome: Auschwitz. O maior campo de extermínio nazista durante a II Guerra Mundial, localizado na Polônia, onde foi exterminada cerca de 1,5 milhão de pessoas nas câmaras de gás - e também pela fome e pelas doenças - entre 1940 e 1945. A grande maioria destes mortos era judia – principalmente aqueles oriundos da Polônia, dentre outros grupos de prisioneiros do III Reich, tais como ciganos – foi assassinado quase um quarto da população cigana européia da época, estimada em um milhão de pessoas, eslavos – destacadamente os nacionais da Hungria – mais de quatrocentas mil, das extintas Checoslováquia e Iugoslávia, holandeses, belgas, prisioneiros de guerra soviéticos – estimados em 15 mil pessoas, deficientes físicos e mentais, dissidentes políticos, artistas e homossexuais.

No todo, seis milhões de judeus – sendo 1,5 milhão de crianças –encontraram a morte nos campos de concentração nazistas durante a II Grande Guerra, pelo simples fato de serem judeus, num plano de extermínio denominado “Solução Final” por seu criador, o ex-chanceler alemão Adolf Hitler. O próprio termo “genocídio” foi criado após o “Holocausto” - como se denomina o genocídio judeu, “Shoah” em hebraico. Portanto, quando o Império turco comete o primeiro genocídio da História moderna, matando quase 1,5 milhão de armênios no princípio do século XX, ainda não havia sido cunhada a expressão.

No dia 27 de janeiro de 1945, as tropas do exército soviético libertavam os cerca de sete mil prisioneiros sobreviventes do inferno de Auschwitz II – Birkenau. Semana passada se comemorou o 60º aniversário da libertação de Auschwitz, no que foi a primeira solenidade da Organização das Nações Unidas – ONU em prol das vitimas de genocídio, na sua sede em Nova York.

O Secretário-Geral Kofi Annan, reconheceu a vergonha do mundo em não conseguir evitar os genocídios do nosso tempo, ou seja, os do Camboja, Ruanda, Curdistão, Bósnia e Darfur – região no Oeste do Sudão, e resumiu o sentimento geral da humanidade sobre o genocídio ao afirmar que “tudo que o Mal precisa para triunfar é que os bons homens nada façam”. Também discursou o Prêmio Nobel da Paz de 1986, o escritor e ativista dos direitos humanos Elie Wiesel, sobrevivente dos campos de horror nazistas, que afirmou que a indiferença que alimentou o Holocausto – que assassinou um terço do povo judeu - é o elemento que até hoje em dia gangrena o mundo.

A solenidade na sede das Nações Unidas acaba de vez com a acusação de anti-semitismo da instituição, feita obviamente por Israel. Entretanto, o boicote por parte dos países árabes foi destaque na celebração, que contou apenas com a Jordânia, único país do Oriente Médio a ter representante discursando na solenidade.

O Primeiro-ministro de Israel, Ariel Sharon, afirmou em Jerusalém que "a triste e terrível conclusão é que ninguém se importou que judeus estivessem sendo mortos. No momento deste terrível teste, amigos e benfeitores não levantaram um dedo. Esta é a lição do Holocausto para os judeus”. Entretanto, muitos foram aqueles que arriscaram a própria vida em defesa do povo judeu. Estes são reconhecidos como “os justos”, e dentre eles encontramos a figura do embaixador brasileiro Luiz Martins de Souza Dantas.

O Instituto Yad Vashem, de Jerusalém, para preservar a memória de todos aqueles que pereceram na Shoah, lançou uma campanha internacional de coleta de nomes das vitimas do Holocausto. Estes nomes, milhões deles, estarão escritos nas "Páginas de Testemunho", no novo museu do instituto, que será inaugurado em março.

Auschwitz deve ser recordado como um símbolo da maldade humana para que jamais volte a ocorrer, um sinal de até onde é possível chegar a política de discriminação racial de um estado moderno, um sinal de toda a dor que é capaz o ser humano submeter o seu semelhante quando o fanatismo domina a mente e os corações. O Holocausto deve servir de lição às novas gerações, como a maior lição de todas na história da humanidade. O nosso pior momento como espécie humana, nossa pior hora deste a criação. O momento da negação do outro, da intolerância absurda, da negação do supremo direito do semelhante existir como tal, pelo simples fato de não ser igual.

Na entrada do campo de Auschwitz – a fábrica da morte - estava escrito um lema que simboliza todo o humor negro da ideologia nazista, que separava os homens em raças superiores e inferiores, como se a maior criação de Deus fosse algo sem alma: “O trabalho os fará livres”. Quanto cinismo. Quanta indiferença.

terça-feira, janeiro 25, 2005

George Bush, segundo tempo


Liberdade. Esta foi a palavra mais ouvida no discurso de posse do Presidente dos EUA George Walker Bush, dia 20 de janeiro de 2005, no que será seu segundo mandato. A palavra liberdade ecoou quarenta e duas vezes nas escadarias do Capitólio, em Washington DC, nos equivalentes em inglês “freedom” e “liberty”.

O segundo mandato dos Presidentes dos EUA costuma carregar em si uma “maldição”, normalmente é um escândalo que enlameia a reputação do ocupante da Casa Branca. Bill Clinton sofreu o escândalo Mônica Lewinsky, Ronald Reagan padeceu com o caso Irã-contras da Nicarágua. Eisenhower teve no seu segundo mandato a escalada da guerra fria, além de ter que aceitar a renuncia de seu chefe de gabinete acusado de aceitar presentes de executivos. Woodrow Wilson sofreu um derrame e terminou seu segundo mandato inválido. Pior mesmo foi Abraham Lincoln, que foi assassinado cinco semanas após tomar posse no segundo mandato. O próprio George Washington teve que enviar tropas para sufocar uma revolta na Pensilvânia, depois que taxou o uísque. Desta maneira, é provável que a maldição do segundo mandato venha a assombrar a Bush, principalmente se não conseguir unir aos EUA, que seguem divididos ao meio, como comprovou os números da última eleição presidencial.

O 43º Presidente dos EUA venceu as eleições americanas de novembro de 2004 com 51% dos votos, ou seja, o senhor Bush obteve 59.017.382 votos contra 55.435.808 votos dados ao candidato democrata, o senador John Kerry, equivalente a 48% do escrutínio. Esta votação resultou em 274 votos no colégio eleitoral para o Presidente Bush, enquanto que o senador Kerry logrou apenas 252.

Os problemas que esperam pelo senhor Bush neste segundo mandato são vários, sendo o maior deles a estabilização da situação no Iraque. A segurança nacional continua a ser um tema de obsessão nos EUA, principalmente depois do 11 de setembro, sendo que no primeiro mandato houve a aprovação de leis que cerceiam as liberdades civis dos estadunidenses e a adoção de uma política exterior militarista, que aumentou o déficit do governo, e intervencionista, primando pelo principio do “ataque preventivo”. No campo das relações internacionais, os EUA necessitam recuperar o aliado europeu e partir para o multilateralismo, recuperando a credibilidade da ONU. Bush, neste mandato, nomeará a mais de nove juizes da Suprema Corte, que decidirão sobre temas polêmicos como aborto, pena de morte e direitos civis. Com relação à Constituição dos EUA, Bush prometeu na campanha a aprovação de uma emenda que encerraria, definitivamente, qualquer legalização dos matrimônios entre pessoas do mesmo sexo. Bush restringiu, em agosto de 2001, o uso e fundos públicos para a pesquisa com células tronco, fundamentais na busca da cura do Alzheimer e da diabetes. O sistema de saúde continuará sem atender as classes menos favorecidas dos EUA, apesar da promessa de campanha de baratear o preço dos remédios. Por fim, Bush continuará a negar-se a assinar o Protocolo de Kyoto, acordo internacional para a redução das emissões de gases contaminantes da atmosfera, como havia prometido o Presidente Bill Clinton, antes de deixar a Casa Branca.

Uma pesquisa realizada pela BBC em vinte e dois países de quatro continentes - e divulgada horas antes da posse - aponta para o fato de que seis pessoas de cada grupo de dez entrevistados consideram a reeleição do senhor Bush como algo negativo para a paz e a segurança mundial. Ademais, os entrevistados consideram “pior” a sociedade estadunidense depois da vitória do senhor Bush e 66% dos entrevistados desaprovam a presença militar no Iraque. Por fim, a imagem mais positiva do senhor Bush vamos encontrá-la na Ásia, e a mais negativa na América Latina e no Canadá. Por países, a pior imagem de Bush se encontra na Turquia, seguida da Argentina, Brasil, Alemanha e França. Convém relembrar a distinção existente entre o governo dos EUA e seus cidadãos, o que nos leva a crer na inexistência de antipatia aos estadunidenses, de um modo geral, neste sentimento para com o senhor Bush.

Costumam dizer que não se pode entender a política nos EUA sem entender a doutrina calvinista. Como afirmou Arthur Ituassu, em artigo recente, “fadado ao pecado, o Homem calvinista é vigiado de perto por uma divindade impiedosa e onipresente”. Caberá a nós, o resto do mundo, o papel de Homem calvinista? E quem nos vigiará de maneira onipresente e impiedosa?

No seu discurso de posse desta semana, o senhor Bush usou a palavra “liberdade” quarenta e duas vezes. Entretanto, a palavra “democracia” somente foi escutada uma única vez. Nada mais.

terça-feira, janeiro 18, 2005

Um planeta em movimento




Cinco dias depois da gigantesca
catástrofe na Ásia,
ladrões, falsificadores de
documentos de mortos,
assaltantes, e até estupradores,
aparecem em cena.
É por isso que eu digo:
sempre se pode contar
com o ser humano.

Millôr,
na Veja, de 12 de janeiro de 2005.

As notícias vindas do sul e sudeste da Ásia e da África chocaram a todos. Mais de 163 mil mortos, oficialmente. Os meios de comunicação de massa não pararam de nos mostrar mais terríveis fotografias, imagens capazes de ilustrar o inferno de Dante na “Divina Comédia”, dignas de revirar o estômago de qualquer um. Quando os homens se imaginam os senhores do planetinha azul, ele dá mostra de independência e nos lembra, através de catástrofes como a atual, que somos apenas uma pequena parte do planeta Terra, e nunca seus senhores.

Na célebre lição do chefe indígena Seattle, em 1854, ao então democrata Presidente dos EUA Franklin Pierce, em resposta a sua proposta de compra das terras tradicionais da tribo Duwaish, “Nós somos uma parte da Terra, e ela é uma parte nossa ... o que acontecer à Terra, acontece também aos filhos da Terra. Quando os homens cospem na Terra, estão cuspindo em si mesmos. Pois nós sabemos que a Terra não pertence aos homens, o homem é que pertence a terra. Isso sabemos bem. Tudo está unido, como o sangue que une a uma família. Tudo está unido”.

E a resposta mundial à tragédia pode comover ainda mais que a própria. Seguiram-se declarações de solidariedade e de apoio na reconstrução dos países atingidos. Ademais de movimentos de Estados e de ONGs. A ONU tem cobrado a efetividade das promessas de ajuda feitas no momento inicial da tragédia, e no local chegam médicos de todos os continentes, com remédios, comida, água potável e muita vontade de ajudar. A onda de solidariedade humana que seguiu o “tsunami” desperta sentimentos de compaixão tanto quanto o próprio desastre. Infelizmente, são nestas horas que podemos realmente ver a raça humana exatamente como ela de verdade é: um monte de pessoas separadas por nações, idiomas, cores e religiões, cheias de dúvidas e angústias comuns, compartindo um mesmo planeta.

O maremoto que causou tanta desgraça foi o fenômeno que conseguiu reunir, desde muito tempo, a todos nós, habitantes desta nave chamada Terra. Como afirmou Diogo Schelp, repórter da revista Veja: “O esforço para socorrer as vítimas de uma catástrofe natural é uma afirmação do melhor que existe no espírito humano, a motivação moral sem a contaminação da política. A devastação das ondas gigantes lembra à humanidade que estamos mais intimamente ligados por forças geológicas invisíveis e imprevisíveis do que por laços comerciais, culturais e políticos”.

Portanto, mesmo sendo capaz das piores barbaridades contra sua própria espécie, devemos celebrar o sucesso da ajuda as vitimas da tragédia natural, pois mais uma vez o ser humano provou que é capaz de se unir em prol de uma causa planetária comum.

quinta-feira, janeiro 13, 2005

O ano do Quixote




Eis o primeiro ensinamento da Cavalaria:
tu irás apagar o que até então
tinhas escrito no caderno de tua vida:
inquietação, insegurança, mentira.
E irás escrever, no lugar disto tudo,
a palavra coragem.
Começando a jornada com esta
palavra, e seguindo com a fé em Deus,
chegarás aonde precisas.

Paulo Coelho,
no “Manual do Guerreiro da Luz”,
citando o “Breviário da Cavalaria Medieval”.


“En un lugar de la Mancha, de cuyo nombre no quiero acordarme...”, assim começa uma das maiores obras da literatura mundial, assim começa o relato das peripécias do engenhoso fidalgo Dom Quixote de la Mancha, obra espanhola escrita por Miguel de Cervantes Saavedra. Pois este ano de 2005 já foi declarado como o Ano do Quixote, tremendas as homenagens que se realizarão para comemorar os quatrocentos anos da publicação desta obra universal. Cervantes nasceu em 1547, nas proximidades de Madri, em Alcalá de Henares, e publicou a primeira parte de seu famoso livro em 1605.

Quatrocentos anos de vida e de sucesso, com milhares de edições em todas as línguas conhecidas do planeta, objeto das mais esclarecedoras e estapafúrdias teses acadêmicas, o Dom Quixote nos conta uma lição de vida fabulosa, pois conjuga o otimismo senil do combatente de moinhos de vento à dureza interiorana e sua realidade faminta de sobrevivência. Um idealista sonhador e outro realista incapaz de fantasiar.

Na verdade, a dupla de protagonistas é insubstituível desde o primeiro momento: o fidalgo e cavaleiro andante “numa Espanha de princípios do Século XVII que começava a esquecer o humanismo renascentista”, e seu fiel escudeiro, “rústico, glutão, de elementar sabedoria e enorme sentido comum, fruto de tantos séculos de luta pela simples sobrevivência”, como recentemente se leu no jornal espanhol El País.

Idealista e sonhador, Dom Quixote segue combatendo seus moinhos de vento. E quem não já procedeu assim, pelo menos uma vez na vida? Quem não perseguiu como um louco a objetivos que na verdade eram simples miragens? Como uma vez já afirmou Santiago Dantas, o verdadeiro louco é aquele que, sendo uma pessoa considerada sã, segue o combatente de moinhos de vento, o que inverte totalmente a ordem dos protagonistas e coloca a Sancho Pança no primeiro plano.

Entretanto, é a liberdade – além do amor e da justiça - o valor maior defendido por Cervantes na estória do cavaleiro da triste figura. E não podia ser diferente, pois a obra foi escrita depois de uma temporada de cinco anos de seu autor no presídio de Argel. Ademais, vale recordar que o amor pela liberdade é um dos grandes valores defendidos nas regras de Cavalaria, e por isso Dom Quixote afirma: "la libertad, Sancho, es uno de los más preciosos dones que a los hombres dieron los cielos; con ella no pueden igualarse los tesoros que encierra la tierra ni el mar encubre; por la libertad, así como por la honra, se puede y debe aventurar la vida, y, por el contrario, el cautiverio es el mayor mal que puede venir a los hombres". Vale lembrar que Dom Quixote é o mais famoso cavaleiro ibérico, mas não o primeiro. Na literatura, o mais antigo foi Tirant lo Blanch, lendário cavaleiro da tradição espanhola.


Não me considero um Quixote, apesar de que muitas vezes combati a moinhos de vento, mas na minha agenda pessoal tenho a seguinte frase escrita na página relativa ao dia 26 de julho, do escritor Ramon Llull, no seu “Livro da Ordem da Cavalaria”, do século XIII: “Se queres nobreza de coração, busca na fé, esperança, caridade, justiça, fortaleza, lealdade e nas demais virtudes, pois nelas reside a nobreza de coração; e por elas o nobre coração do cavaleiro se defende da maldade e do engano e dos inimigos da Cavalaria”. Que todos nós sejamos nobres de coração, mesmo sem sermos Quixotes na vida.