quarta-feira, outubro 26, 2005

Rosa do Alabama




Foi um dia como outro qualquer.
A diferença foi que as pessoas se uniram.
Nunca pensei que se transformaria nisso.

Rosa Lee Parks


Era uma vez uma costureira pobre que voltava para casa no fim da tarde, depois de um dia duro de trabalho. No ônibus, um sádico motorista gritou para que ela, e três outros passageiros, se levantassem para que um único passageiro pudesse eleger onde sentar. Mas, o que alçava aquele passageiro à categoria de melhor passageiro entre os demais, se todos pagaram o mesmo valor pelo bilhete da viagem?

No Estado do Alabama, EUA, durante os anos da década de 1950, vigoravam leis de discriminação racial, pelas quais os negros eram considerados cidadãos de segunda categoria, e, conseqüentemente, segregados em escolas, banheiros e transportes coletivos. Nos ônibus, os assentos dianteiros estavam reservados aos brancos, os de atrás aos negros e os do meio, também aos brancos. De acordo com as leis daquele verdadeiro apartheid estadunidense, aquela pobre costureira negra deveria ter se levantado para ceder seu assento a um passageiro branco, pois se encontrava em um assento do meio do ônibus. Assim determinava a lei. A lei que embora norma jurídica fosse, era ilegítima e imoral, e que portanto atentava contra o Direito.

Naquele 1º de dezembro de 1955, a senhora Rosa Lee Parks, a costureira pobre de nosso artigo, moradora da casa 634 no conjunto habitacional proletário de Cleveland Court, decidiu não se levantar. E desde aquele momento a chama da liberdade voltou a brilhar no altar da dignidade humana e a história dos EUA jamais foi a mesma. Imediatamente presa por desrespeito à lei do Alabama, a senhora Parks, aos 42 anos, tornou-se um símbolo da luta contra a discriminação racial não somente nos EUA, mas em todo o mundo. Em reação à sua prisão, a população negra da cidade de Montgomery, capitaneada pelo então jovem pastor batista Martin Luther King, promoveu um boicote ao transporte coletivo que durou mais de ano, e forçou o fim das leis racistas no sul dos EUA.

Vale lembrar que os principais atos de resistência pacífica naquele período foram promovidos por mulheres, o verdadeiro substrato do movimento. E não somente mulheres negras, pois houve uma participação ativa de muitas mulheres brancas, conscientes e comprometidas com o movimento, como por exemplo a patroa da senhora Parks, Virginia Durr.

O incidente serviu de estopim para a luta pelos direitos civis nos EUA, que culmina em 1964 com a revogação das leis de segregação racial estadunidenses e que, posteriormente, encontrarão eco, anos depois, nos assassinatos de Martin Luther King, ganhador do Nobel da Paz, e do Presidente Kennedy. Além de transformar a senhora Rosa na verdadeira pioneira da luta contra a discriminação racial nos EUA.

A senhora Parks cresceu marcada pela humilhação e desde criança estava acostumada a dormir vestida, caso precisasse fugir de sua casa no meio da noite por causa de algum ataque da Ku Klux Klan. Sua militância contra a discriminação racial apenas aumentou quando não pôde votar no Presidente Roosevelt, pois naquela época nos EUA, os negros tinham que pagar uma taxa especial para votar, além de prestarem um teste escrito. Mais tarde, foi eleita secretária da ‘Associação Nacional para o Progresso de Pessoas de Cor’, hoje o maior lobby negro dos EUA, como relata a jornalista Maria Ramírez, para o jornal espanhol El Mundo.

A senhora Rosa Parks morreu esta semana, em companhia dos amigos, aos 92 anos de idade, respeitada e reverenciada por sua luta, coberta pelo reconhecimento nacional. Pela sua militância em prol dos direitos civis, ela ganhou os dois maiores prêmios estadunidenses: a Medalha Presidencial da Liberdade, em 1996, e a Medalha de Ouro da Honra, do Congresso dos EUA, em 1999.Contudo, a senhora Rosa Parks não foi a primeira mulher a ser presa por descumprir a lei de apartheid estadunidense, pois naquele ano de 1955 duas outras já o haviam sido, sendo que a primeira foi Claudette Colvin.

Em 1956, a Suprema Corte do Alabama decidiu pela inconstitucionalidade da lei de segregação racial no transporte coletivo. Entretanto, naquele dia 1º de dezembro de 1955, alguém reagiu quase que em silêncio aos gritos irracionais do racismo, olhando pela janela do ônibus uma solitária senhora deu uma das maiores lições de dignidade humana a toda humanidade. Seu nome era Rosa Lee Parks, louvado seja.

segunda-feira, outubro 17, 2005

A grande família




I would love to go
back to the old house
but I never will

Back to the old house

THE SMITHS,
em “Hatful Of Hollow”,
novembro de 1984,
Reino Unido.


Deus é realmente um sujeito muito irônico. Mas que grande presente que nos deu. A família é sempre necessária, tanto em boas horas, como nas horas ruins. Ter um pai, uma mãe, irmãos! Que benção divina! Que sopro divino é possuir gente de nosso sangue por perto, nem que seja pra dizer que não estamos muito bem.

Sinto profundamente muita pena daqueles que nunca saberão o que é ter uma família. Não que devamos sempre estar junto dela. É necessário, às vezes, afastar-se, calar a boca, fugir de suas tão familiares opiniões. Às vezes, é necessário um pouco de sadio individualismo e caminhar sozinho. Mas todos estes momentos não conseguem apagar a grande importância que é ter uma família, um endereço certo, uma direção para as cartas chegarem.

Principalmente, quando os tempos não estão tão bons e a vida parece um filme sem graça, é quando mais precisamos de casa. Portanto, nem falar de quando estamos sozinhos, num país distante, longe destas pessoas que nos aceitam quase por obrigação ou costume, sem julgamentos duros, com uma complacência que não se encontra no mundo real.

Lembro até hoje do meu pai, sempre indo trabalhar. Nunca estava por perto, sempre tinha que ir trabalhar. Como aquela frase muito antiga que eu vi num filme destes qualquer, tipo “Sessão da Tarde”: Pai é como luz de geladeira, a gente não sabe o que acontece quando fecha a porta. De maneira que ele apenas saia pra trabalhar, da mesma maneira que fechamos a porta da geladeira.

E me lembro, mais ainda, de seu cheiro. Cheiro de pai. Eu sei que é difícil para quem nunca teve pai por perto compreender sobre o que’u estou me referindo, mas todo pai sempre tem esse cheiro de pai. É um cheiro natural, não é forte nem fraco, é um cheiro único. Como sentir e nunca esquecer o cheiro da mulher amada. Todo pai possui o cheiro de pai, e dele não se pode falar muito, pois é necessário ter pai para compreender, para saber do que estou dizendo.

Igual ao cheiro de pai, é preciso sentir o cheiro de mãe, esta coisa tão estranha, este ser tão misteriosos. Afinal, você estava dentro dela por nove meses, e se não consegue lembrar deste tempo, não se preocupe, quase ninguém pode lembrar mesmo. Mas é preciso lembrar quantas vezes esta mulher te protegeu do teu pai, do braço forte, da voz dura e da palmada segura.

E, como se não bastasse, é necessário lembrar do cheiro de avô e de avó, da casa grande e velha, que está naturalmente no interior, na cidade da infância, no mundo do passado e que não tem, necessariamente, que ser feliz. Somente é a casa de teus avós, a casa dos velhos que tiveram um dia um menino que hoje é teu pai. Sem esquecer das tias, velhas tias, sempre tão tias. No meu caso a cidade da memória é Floriano, está no sul do Piauí, naquela grande curva do rio Parnaíba, e a velha casa grande está na rua José Messias, não importa se o nome da rua mudou, para mim será sempre rua José Messias.

A grande família continua, com novos personagens, com as netas e netos, crianças que não nasceram de ti, mas do sangue dos teus irmãos. Meninas e meninos que estarão prontos pra vida, para o amanhã, para o indecifrável futuro que hoje construímos, sem nos esquecer do passado.

Mas não é só. Há os tios, os primos, a grande família cresce em progressão geométrica. Não consegue parar. As listas de chamadas das escolas de amanhã estarão cheias de sobrenomes conhecidos, tão próximos e, talvez, tão distantes.

É ávida, que igual a um rio, não pode parar. E renasce a cada dia, queiramos ou não. Segue seu percurso, seu inevitável caminho temporal. Talvez a grande família seja apenas um pensamento divino, um segundo na grande página do tempo, mas é o que basta pra mim, que caminho sozinho, nesta avenida iluminada de luz amarela e vento frio, que todo mundo chama “vida”, e que chamo “destino”.

* Escrito na cidade de Valencia, Espanha, em 31 de maio de 1999, primavera.

segunda-feira, outubro 10, 2005

Os Freitas





Eu nasci muito longe de onde cheguei,
talvez esteja no caminho de volta para casa, mesmo se até hoje não sei exatamente onde é minha casa.
Bob Dylan.



Às vezes penso em meu pai, em meu irmão, meus primos e em meu tio Benedito. São os Freitas. Sim, são os Freitas e são bons pra valer. São melhores que eu. Os Freitas são homens de bom coração, porém sem alma. Incapazes de gritar no porto ao ver o sol se pôr, são demasiado verdadeiros para se mostrarem de verdade.

Os Freitas estão por aí, e todos podem encontrá-los, na esquina, na missa, comprando um jornal, na festa nacional, ou no baile secreto. São homens cordiais, são amigos sinceros. Buscam algo que ainda não sabem. Escondem sua dor. Jamais sentiram dúvida sobre nada, os Freitas sempre possuem a frase certa e conhecem a palavra sagrada. E se vestem de diversas formas, mas sempre estão muito a gosto, seja em bermudas ou em tênis multicoloridos.

E existem mulheres que se enamoram dos Freitas. Algumas sabem quem são de verdade, mas todas conseguem dominá-los, pois os Freitas são homens de bem. A ordem, as eleições estão chegando e os Freitas já sabem em quem votar. Afinal, os filhos precisam de paz e tranqüilidade, nada de agitação. No mundo dos Freitas não há tempo para dúvidas. Que importa se jamais conseguimos fazer o gol de primeira no Maracanã lotado? Temos a tradição, o nome, o valor, as tias moças velhas em Floriano, a semana santa em Oeiras.

Alguns estão velhos, como o Antonio Rocha, outros estão mortos, como Senhor Rocha. Outros, não sabem que já morreram há muito e continuam vagando. Enfim, os Freitas estão aí, sempre escondendo o que realmente sentem, sempre calando o que todos querem ouvir.

Não esperem deles o toque de atacar, e muito menos algo incomum. Enfim, são apenas os Freitas, pessoas normais, extremamente normais. Se eles comungam, você não perceberá. E se não, você também não perceberá. Os Freitas são invisíveis.

Também não se reúnem em data marcada. Os Freitas são incapazes de marcar uma festa de família ou uma data especial. Não porque não gostem de se encontrar. Não, muito pelo contrário. Na verdade apenas tem medo de que os outros digam que não, apenas isso.

Amantes do lar, os Freitas criam seus filhos. Educação sempre esteve em primeiro lugar, afinal os Freitas acreditam na cultura e alguns, em momentos de sumo segredo, até escrevem poemas.

Sim, os Freitas caminham para o futuro, com seus segredos e suas poucas palavras, com suas cabeças baixas e seu orgulho de ferro. Eles não esperam muito do destino, isso fica para os sonhadores, não para eles. Sim, os Freitas crêem que são pessoas normais. A felicidade, meu amigo, é coisa de cinema, não é coisa que acontece todo dia, tanto mais aqui, e muito menos conosco. Afinal, pagamos impostos, economizamos dinheiro, casamos e temos filhos, somos normais. A felicidade, isso é coisa de novela, não nos faz diferença. Somos os Freitas, que mais podem esperar de nós?

* Escrito na cidade de Valencia, Espanha, em 16 de abril de 1999, primavera.