sexta-feira, março 31, 2006

História congelada



Sigue los deseos de tu corazón;
busca la felicidad.
Haz en este mundo
todo aquello que tu corazón desee.

Terenci Moix,
nas palavras do canto
do harpista na tumba
do rei Intef



Leo Musttonen era um jovem soldado do Exército dos Estados Unidos, que naquele dia completaria seu treinamento como navegador aéreo, sobrevoando as montanhas brancas de Sierra Nevada, na Califórnia. A cabeleira loura, algumas moedas, suas cadernetas de endereços pessoais e seu amuleto da sorte, uma caneta tinteiro Sheaffer, lhe acompanhavam naquele vôo treinamento, antes de cruzar o Oceano Atlântico abordo dum navio de transporte de tropas em direção a Inglaterra, pra desde lá, sobrevoar a Europa dominada pelos nazistas.

Também levava uma piada boba de cunho sexista que dizia: “Um pássaro na mão vale mais que dois voando. Todas as grotas sabem”. Ele já havia realizado dezenas de vôos e somente o friozinho normal de sempre lhe percorria o estômago, forrado de café preto e panquecas. Seus pais, Arvid e Anna Musttonen, imigrantes finlandeses, estavam muito orgulhosos do soldado Musttonen e do papel que seu novo país desempenharia no teatro da II Guerra Mundial. O jovem Leo havia nascido há 22 anos em Brainerd, Minessota, e no colégio fazia parte da banda de música da escola.

Mas, naquele dia o destino de Leo Musttonen estava selado pra sempre. Ele seria mandado, por alguma razão ou lógica que desconhecemos totalmente, direto daquele longínquo 18 de novembro de 1942 para o ano de 2005. Contudo, ninguém jamais saberia o que lhe ocorreu depois daquele último salto do jovem navegador aéreo loiro. Pelo menos, durante os 63 anos seguintes que se seguiram ao desaparecimento do avião que o levava, junto a três outros colegas.

No ano passado, alpinistas encontraram o corpo congelado do jovem soldado Leo Musttonen no alto da Geleira Darwin, com sua cabeleira loira e sua cabeça esmagada, carregando nas suas costas um perfeito e fechado pára-quedas no qual se lia “Exército dos EUA”. Como um túnel do tempo, o encontro do corpo do soldado remeteu-nos ao período histórico da II Guerra Mundial.

Naquele dia, o avião que levava o soldado Musttonen entrou em pane. Ele conseguiu saltar, mas o pára-quedas não abriu. Assim é a nossa vida, muitas vezes pensamos que estamos seguros, com nosso pára-quedas bem atado às costas, caso o avião que voamos entre em pane. Então o pára-quedas não abre e a viagem muda repentinamente de rumo, jogando-nos de encontro ao vazio, num último e definitivo vôo, direto pra dentro da História.

quarta-feira, março 22, 2006

São demais os canalhas desta vida














SIC TRANSIT GLORIA MUNDI.Dessa maneira,
São Paulo define a condição humana em
uma de suas epístolas:
a glória do mundo é transitória.
E, mesmo sabendo disso,

o homem sempre parte
em busca do reconhecimento
pelo seu trabalho.
Por quê?

Paulo Coelho



O meu país possui muitos canalhas. E os canalhas dominaram o Brasil. Mas não dominaram de repente. Não, os canalhas foram dominando devagarzinho, cheios de moral, de peito inchado, bradando a retórica da desfaçatez e do cinismo. Foram ocupando o bar, o clube, a praça, as cidades do interior, a faixa de pedestres, o estádio de futebol, os movimentos sociais, os partidos políticos, o carnaval e os cargos federais.

Os canalhas estão por toda parte, na fila do banco, no estacionamento do shopping center, almoçando a seu lado, te olhando no elevador. E são das mais variadas formas e tamanhos. Há canalhas sorridentes, canalhas sérios, canalhas baixos de barba, canalhas altos e de cara limpa, canalhas analfabetos e outros nem isso. Mas existem os bons canalhas, os que prometem e não cumprem, os que pensam que são espertos e que ninguém desconfia da sua salafrarice. Os canalhas municipais solicitam aos canalhas estaduais que peçam aos canalhas federais doses extras de broches coloridos para a lapela, para o desfile nacional. Os safardanas que nunca administraram nada, nem mesmo suas miseráveis vidas ordinárias.

Tudo igualmente canalha, tudo normalmente canalha, tudo tão claramente canalha. Os novos canalhas de sempre foram substituindo os velhos canalhas de ontem. E tudo ficou tão canalha, mas tão canalha, que ninguém mais se assusta com nada. As pessoas ficaram paralisadas, sem se dar conta que tudo passa, tudo mesmo, e até os canalhas passarão. Mas enquanto isso, vamos convivendo com os canalhas. Canalhas que fazem as leis e não cumprem, que sonegam e ainda por cima apresentam a prestação de contas com notas frias. Canalhas que se agarram com unhas e dentes a seus DAS.5, porque precisam pagar as pensões alimentícias das pobres coitadas que pariram seus filhos estudantes de filosofia e que no futuro serão o mesmo que seus papais: canalhas. Os canalhas procriam aos turbilhões, são férteis, promíscuos e ruins de cama. Mas sempre haverá uma gorda horrorosa para um velho canalha movido a pílulas azuis.

Os canalhas dirigem carros enormes, quase sempre comprados de segunda mão. Os canalhas necessitam de muito espaço, necessitam serem louvados. Os canalhas vestem camisas pólo e calça social. Os canalhas têm sotaques. Os canalhas bebem chope e sempre possuem uma explicação para todas as suas derrotas categóricas. Os canalhas estão cercados de gente burra, que pesam que por terem vivido uns anos adquiriram sabedoria aos esbarrões. Os canalhas plantam mal e colhem pior ainda. São incapazes de respeitar seus testículos e jamais se irritam com nada: o importante é manter as aparências, mesmo caindo de podre, disse o velhaco. Os canalhas possuem o vil sangue de barata!

Mais que merda de canalhas fizeram isso com meu país? Foi pra essa canalhada analfabeta e mal cheirosa, de dentes mal cuidados, ditarem as regras? Foi pra isso que as pessoas comuns escolheram os patifes? Foi pra isso que derrubamos os velhos canalhas? Para sustentar novos canalhas cheios de diárias para países que nunca jamais poderiam passear por seus próprios bolsos? Cadê a rapaziada que acredita na vida? Onde estão os verdadeiros nobres de espírito do Brasil? Foram embora? Fugiram? Estão tentando cruzar a fronteira mexicana? Por que os homens de verdade deste Brasil não gritam? Pra onde escorreu o sangue das veias? Então é que os canalhas venceram?

Sem perceber, o canalha do teu lado bateu tua carteira, saiu correndo e pulou o muro do colégio de freiras carmelitas. Justo agora, quando você ia pagar a conta, e dar uma gorjeta pro desgraçado do garçom magro e mal nutrido, que engordou de repente, quando foi promovido a gerente do puteiro que você jamais freqüentou. Nesse exato momento, enquanto você olhava as pernas da filha gostosa da colega de trabalho do teu tio do TCU, o canalha saltou o alambrado do parque e gritou – pega ladrão, pega!



* Escrito na cidade de Brasília em 18 de novembro de 2005

quarta-feira, março 01, 2006

Até o fim


Quando nasci veio um anjo safado
O chato dum querubim
E decretou que eu tava predestinado
A ser errado assim
Já de saída a minha estrada entortou
Mas vou até o fim
(...)
Criei barriga, minha mula empacou
Mas vou até o fim
Não tem cigarro, acabou minha renda
(...)
Eu já nem lembro pronde mesmo que vou
Mas vou até o fim
Como já disse era um anjo safado
O chato dum querubim
Que decretou que eu tava predestinado
A ser todo ruim
Já de saída minha estrada entortou
Mas vou até o fim

Chico Buarque
"Até o fim",
1978.
Tem dias que a gente fica tristão mesmo, principalmente depois do carnaval, achando que aquela alegria boba apenas adia o momento de decidir tanta coisa que a gente considera importante e que nem começou a pensar direito. Aí vem uma amiga nova que já conhece um pouquinho do nosso jeito de ser e, olhando praquela cara triste de dar pena, diz: - Você está sem plano de vôo. E acerta na mosca. Bingooooooo. Na mosca mesmo, porque faz tempo que você anda sem rumo, sem “plano de vôo”. Porque está escrito na tua cara que você navega sem rota há séculos num oceano Atlântico de opções, com toda tua vontade de ser feliz e de comer o mundo.

Mas quantas vezes você já navegou sem plano de vôo e afinal, que diabos significa ter um plano de vôo na vida? Claro que eu já fiz mil planos na vida e que todos escorreram feito cerveja gelada pela garganta de um sedento no passar dos anos. E tinha que ser assim, não há outro modo. Porque a vida é isso mesmo. Hoje você faz planos e planeja tudo certinho, aí vem o destino amanhã e revira tudo, deixa tudo igual que antes, de pernas pro ar. Minto, isso acontece se você tiver um caquinho assim de sorte, porque pode ficar muito pior. Então o melhor é ter idéias, ter princípios, confiar em você mesmo, esperar um pouquinho enquanto passa o “banzo” pra voltar a sorrir e, de novo, fazer mil planos, esperando sempre que a grande roda da vida volte a rodar e parar no teu nome.

Todo dia é segunda-feira, todo dia é dia de recomeçar, de sacudir a poeira e dar a volta por cima. Dizem que os suicidas odeiam as segundas-feiras. A idéia de recomeçar os arrasa. Pois nada disso ocorre comigo. Eu simplesmente amo as segundas-feiras, encanta-me a idéia de recomeçar a cada dia, com mais garra, com mais pique, esperando sempre aquela sensação de gol do Fluminense no estádio das Laranjeiras lotado. Segunda é dia de ir pro Armazém do Ferreira e beber chope, e comer quibe, e encontrar o Piauí e perguntar pela última piada de Brasília. É dia de chegar no trabalho e berrar na porta: - Bom dia torcida brasileira!

É que às vezes é preciso dar um tempo nos planos e viver o dia. Agüentar a chatice da melancolia pra escrever algo interessante. Como em “Coração de caçador”, às vezes faz falta sofrer um pouquinho pra começar a filmar, mesmo estourando o orçamento, deixando os atores malucos e o produtor arrancando os cabelos de puro desespero. De vez em quando faz falta ficar meio perdido mesmo, esperando que as idéias amadureçam um pouquinho, que o mundo se esqueça de nós pra podermos sorrir outra vez. Mas, como diz a canção nordestina: Não se avexe não.

Então vamos com calma. Já já aparece outra loucura, outra fantasia, outro projeto. A vida não pára. Pode ser aqui, agora, ou no estrangeiro, aí eu vou embora. Quem sabe ser funcionário da ONU ou mesmo professor em Angola. Largar tudo e investir em viver de literatura ou mesmo voltar pra província e contar estórias de como você foi “cavaleiro andante” pra impressionar adolescentes estudantes de direito ou letras. Eu já me acostumei em viver assim, flibusteiro cigano, sem ter casa nem bandeira, vivendo de qualquer maneira, no meio de um mundo tão louco, encontrando bondade e maldade em cada porto.

No meio da calmaria eu não me stresso. Afio minha espada, bebo meu rum, canto minhas canções. Sou caolho e perna-de-pau. E tenho um lenço atado à cabeça. As velas estão inçadas, as amarras estão soltas e minha âncora há muito está levantada. Quando o vento soprar, eu vou a mil, gritando feito um louco no meio do oceano mais desconhecido ou nos mares do sul. Tenho munição, a tripulação está descansada e temos fome de riquezas e botins de guerra. Oh, inimigos meus, preparem-se, porque este judeu errante está transbordando de desejo de vitórias.

E será como sempre, novos desafios, grandes projetos, batalhas inesquecíveis, vitórias e derrotas. Vida, acima de tudo. Que os adversários estejam à altura dos nossos heróis e que as mocinhas estejam com os corações cheios de paixão e lábios abarrotados de ternura molhada, entre outras coisas. Sempre em frente, jamais voltamos, feito a “Royal Navy”, mas sem bandeiras ou portos obrigatórios a que retornar. Sem amos nem escravos. Apenas nós mesmos e o grande e desconhecido futuro. Cara a cara.

Seja o que for, eu há muito estou preparado. Porque quem vive sem plano de vôo sempre está preparado. Pra encontrar você ao dobrar uma esquina, pra desencantar de vez com nossa América Latina ou mesmo pra apertar o nó da gravata. Meu coração é novo e meu anjo da guarda já enlouqueceu faz tempo. O importante é saber tirar proveito do silêncio, da falta de riso, da falta de saco, deste vazio momentâneo. É saber quem você é de verdade, no meio do tiroteio infernal ou no meio da companheirada mais boçal. Sempre com grandes planos pro futuro, cuidando dos pequenos, celebrando a vida e cantando todo dia: Força sempre, até o fim.