domingo, julho 06, 2008

Eu nunca disse que a abertura do comércio seria boa para todos ao mesmo tempo


Entrevista com PASCAL LAMY
Diretor Geral da Organização Mundial do Comércio - OMC

"Eu nunca disse que a abertura do comércio
seria boa para todos ao mesmo tempo"

C. DELGADO / C. PÉREZ – El País - 06/07/2008

Tradução de Antonio de Freitas

A hora da verdade. Agora ou nunca. A última oportunidade. A eterna última oportunidade que aparece sempre para as negociações sobre a Rodada Doha para reduzir as taxas aduaneiras e as subvenções e liberalizar o comercio mundial. Este ano não é uma exceção. Pascal Lamy (Levallois-Perret, França, 1947) se apresenta em Madri para cruzar idéias sobre a crise alimentar. Ao mesmo tempo, aquele que é Diretor Geral da Organização Mundial do Comércio (OMC), está metido na preparação da enésima última oportunidade para a Rodada Doha.

Os sucessivos fracassos desde 2001 para avançar na abertura comercial foram a tônica tanto do mandato de Lamy -desde 2005- como anteriormente, frente ao choque entre os países em desenvolvimento e as grandes potencias mundiais. Porém, em que pese viver atracado num jogo de puxa e afrouxa entre países, Lamy não perdeu a esperança. "Esta vez é diferente", sentencia. A crise alimentar, paradoxalmente, incrementa as probabilidades de sucesso. O Diretor confia em que a reunião de 21 de julho em Genebra criará as bases para um acordo definitivo no final do ano. E, em que pese às recentes declarações de um marcado matiz protecionista do presidente francês, Nicolas Sarkozy, Lamy é consideravelmente otimista: "Minha sensação é que se pode fazer".

P. A próxima reunião da OMC em Genebra é a última oportunidade... outra vez?
R. O objetivo é concluir a negociação no final do ano, para o qual necessitamos chegar a um acordo sobre os 20 temas que a compõem. E minha sensação é que se pode fazer. Se não sentisse que se pode fazer, não haveria convocado os ministros.

P. Que probabilidades há?
R. Eu creio que mais de 50%. Porém é necessária uma vontade política, que acredita que existe. Temos que encontrar o equilíbrio adequado entre os 152 membros; mais concretamente, o equilíbrio adequado entre os países em vias de desenvolvimento e os desenvolvidos. Trata-se de reequilibrar o sistema comercial a favor dos primeiros. E para isso, a negociação tem duas caras: uma técnica e outra política. Se a negociação tem sucesso, ambas se solucionarão. Se fracassar, nem a solução técnica nem a política sairão adiante.

P. Como pode afetar a negociação a crise alimentar?
R. Esta crise tem muitas arestas: requer soluções a curto e a longo prazo, de natureza estrutural e conjuntural, e ademais não tem um conserto rápido. Podemos tratar alguns problemas básicos, como o desequilíbrio entre oferta e demanda. Não se pode reduzir a demanda, assim que a solução passa por aumentar a oferta. Isso se pode fazer mais rápido e com maior eficácia nos países em vias de desenvolvimento. Sua capacidade de produção se viu obstaculizada por distorções do comercio mundial: subvenções às exportações e ao comércio interior, taxas aduaneiras elevadas... E aqui esta a contribuição que a OMC pode fazer. Podemos fazer que as regras do comércio mundial sejam mais justas.

P. As crises de fome dos últimos meses são conseqüência do fracasso da OMC e de outras instituições multilaterais?
R. Eu não diria isso. É uma crise muito complexa, é uma espécie de tormenta global, que não existiria se uma serie de fatores estruturais e conjunturais não houvessem acontecido simultaneamente.

P. Muitos países respondem à crise com mais protecionismo.
R. O protecionismo não é a solução. Se um país começa a proteger-se a si mesmo, os demais vão fazer o mesmo, e ao final haverá menos possibilidade de que os produtores acessem aos mercados globais. E nesse caso haverá menos investimentos, e com menos investimentos, menos produção, como num círculo vicioso.

P. Seria mais fácil sem Bush?
R. Na OMC não elegemos os Governos.
Esta Administração dos EUA disse oficialmente que quer encerrar esta negociação antes que termine o ano. Agora, como todos os demais negociadores, acrescentarão condições, porque são cautos. Não cederão a qualquer preço. Ninguém vai encerrar o trato a qualquer preço.

P. O problema é o Ocidente ou os países em desenvolvimento?
R. Se escutamos os 152 negociadores, hoje todos estão dizendo: 'Ummh, ainda não. Pago muito e não recebo demasiado'. Isso ocorre quando falas com eles um por um. E ao final desse processo não sobra mais remédio que pensar: 'Que lugar tão estranho: todos pagam muito e recebem pouco. Deve haver um buraco negro em alguma parte'.

P. Com os sucessivos fracassos dos últimos anos, um acordo seria quase um milagre...
R. Após quase sete anos de negociação se fizeram progressos enormes. O que havia encima da mesa noutras ocasiões e o que há agora é como a noite e o dia.

P. A reforma da política agrária européia lhe agrada?
R. Não estou no negócio de opinar sobre uma política em particular, estou no mundo da negociação comercial multilateral.
A União Européia reformou sua política em 1992, 1999, e em 2003, sempre na direção de conceder menos subvenções e subsídios que distorcem o comércio. Nas reformas da União Européia há uma sensação de direção, de compromisso.

P. Economistas como o vencedor do Prêmio Nobel Joseph Stiglitz criticam vários aspectos da globalização. Em sua opinião, a liberalização talvez não seja a única maneira de solucionar este tipo de problema. Concorda?
R. Se entendi bem a Stiglitz, o que disse não é que o problema seja a globalização, senão como enfrentar-se à globalização, como abordá-la. Eu nunca disse que a abertura do comercio seja muito boa para todo o mundo ao mesmo tempo, norte, sul, leste, oeste, ricos, pobres ou classe média. A abertura comercial, como a tecnologia, reorganiza os sistemas. Eu creio acima de tudo que a abertura comercial é melhor que a restrição comercial; que por cima de tudo, a quantidade de ganhadores é maior que a de perdedores, mas eu nunca disse que isto ocorra como um milagre.

P. É otimista?
R. O que sou é ativista.

Doha, outra vez

Dia 21 de julho. Outro dia de nervos para Pascal Lamy. Outra reunião, que outra vez parece ser definitiva. Uns trinta ministros dos países chave na negociação da OMC sobre a abertura do comercio (conhecida como a Rodada Doha) se reunirão para tentar tomar a decisão final. Assistirão, entre outros, representantes do Brasil, EUA, México e a União Européia. Quase todos são positivos. O primeiro é Lamy. Porém, Lamy já era positivo em 2007, quando prognosticou que conseguiriam um acordo antes do final desse ano.

Doha começou em 2001. É herdeira da rodada anterior, a do Uruguai, que terminou sem um acordo sobre comercio agrícola. Um obstáculo com o qual ainda hoje tropeçam. "Os temas mais importantes para julho são a redução das subvenções à agricultura, as taxas aduaneiras agrícolas e as taxas aduaneiras industriais, ademais de algum avance nos serviços", repassa Lamy.

E o que ocorre se a reunião segue sem haver acordo? Talvez seja o fim da rodada, talvez só outra morte que levará a outra ressurreição. Porque Doha já morreu em 2006 e em 2007. "Todas as negociações de comercio deste tipo tiveram altos e baixos", justifica o diretor. "A negociação final será inevitavelmente longa, porque tomamos as decisões por total consenso, e são 152 membros falando sobre 20 temas". No fundo, Lamy encontra uma vantagem em tanta lentidão. "É um sistema para decidir controvertido, complexo, aberto aos que causam problemas, mas ao final do dia tudo isso faz que seja muito sólido".