Setores judeus acusam a Pacelli de fazer vista grossa ao Holocausto
Tradução de Antonio de Freitas
O processo de beatificação do Papa Pio XII (1939-1958), assunto espinhoso e com ramificações diplomáticas e políticas de profundo calado, aguarda a assinatura de Bento XVI. Porém, tropeçou com um obstáculo que já se esperava: a amarga censura de amplos setores do judaísmo, que acusam a Pio XII de fazer vista grossa ao Holocausto. Ratzinger, que destacou em setembro o trabalho silencioso e secreto de Pio XII em favor dos judeus, optou agora por promover uma investigação mais profunda. Através de seu porta-voz, Federico Lombardi, confirmou que "não assinou ainda o decreto das virtudes heróicas" de Eugenio Pacelli, e que o assunto "está sendo objeto de estudo e de reflexão". Lombarda pediu calma a católicos e judeus.
O Vaticano sabe bem que a figura de Pio XII é objeto de ácidas críticas em Israel, críticas que não somente recaem sobre este Papa. Ontem apareceu numa web de simpatizantes do Kadima – o partido do primeiro-ministro israelense Ehud Olmert - uma fotografia de Ratzinger com uma cruz gamada sobreposta. Horas depois, foi retirada. Lombardi recordou que o Vaticano já protestou quando o Museu do Holocausto de Jerusalém (Yad Vashem) colocou o seguinte texto sob a fotografia de Pio XII: "Quando a relação de fatos sobre o massacre dos hebreus chegou ao Vaticano, não reagiu com protestos escritos ou verbais. Quando os judeus foram deportados de Roma a Auschwitz, Pio XII não interveio... Quando os fornos eram alimentados dia e noite, o Santo Padre que vive em Roma não abandonou seu palácio".
Essa ojeriza, que expressou há duas semanas em Roma o rabino chefe de Haifa, Shear Cohen, convidado especial do pontífice ao sínodo, é o maior obstáculo no processo de beatificação. O Vaticano pede tranqüilidade antes de tomar uma decisão. Lombardi apontou que "nesta situação não é oportuno tentar pressionar nem para um lado nem para outro". Mas, ao mesmo tempo, no passado fim de semana, o relator do processo de beatificação, Peter Gumpel, e o postulador, Paolo Molinari, reavivaram a polêmica pelas "falsidades" lançadas contra o Papa Pacelli. Gumpel afirma que "são uma evidente falsificação histórica" e que Bento XVI "tem em suspenso o processo" porque deseja manter relações amistosas com os judeus.
Tanto Gumpel como Molinari esperam um gesto de Israel. Ambos pedem que a inscrição sobre Pio XII seja retirada do Yad Vashem, e Molinari se queixa: "Prometem que vão mudá-la, porém não fizeram nada". O postulador confirma que Bento XVI espera um sinal de "arrependimento" que acabe com a lenda negra de Pacelli para seguir com o processo. Ratzinger duvida. Teme que a beatificação suscite airadas reações em Israel e nos EUA.
Israel e o Vaticano estabeleceram relações diplomáticas a começos dos anos noventa. Entretanto possuem assuntos pendentes que aprofundam o receio mútuo. As instituições católicas em Jerusalém lamentam que não se resolva a expropriação de terras e outras propriedades, que não desfrutem de isenções fiscais e que os clérigos não disponham de liberdade de movimentos para visitar a Cisjordânia.
O presidente Shimon Peres pretende que Bento XVI marque uma visita oficial a Israel. O processo de beatificação supõe um obstáculo a mais para a organização de uma visita que exige a negociação do protocolo. A maioria dos chefes de Estado e Governo que visitam Israel pára no Museu do Holocausto. É impensável que Bento XVI acuda se a polêmica placa continua exposta.
"Temos razões para pensar que Pio XII não fez o suficiente para salvar vidas judias. Não quero julgar. Se existem evidencias deverão ser examinadas cuidadosamente", afirmou no domingo Peres. "A visita nada tem a ver com as disputas. Esta terra é santa para todos nós". Ainda que com estas palavras, a visita de Bento XVI se vincula à polêmica. O Museu do Holocausto – que sempre pressionou para que o Vaticano abra seus arquivos- expressou-se com cautela. "Qualquer visita do Papa a Israel seria um assunto político do que o Yad Vashem não é parte". "Estamos convencidos de que a abertura dos arquivos ajudaria a clarificar este episódio histórico".
HILARI RAGUER
Historiador e monge de Montserrat
El País - 21/10/2008
Tradução de Antonio de Freitas
Os apologistas de Pio XII o absolvem de toda responsabilidade por seu silêncio sobre o Holocausto alegando que foi um mal menor, pelas represarias terríveis que a denuncia haveria provocado. Porém, cabe imaginar um mal maior que o extermínio que já se estava dando? Conseqüências piores podiam ocorrer, em todo caso, não para os judeus, mas para o Papa, talvez com a ocupação militar do Vaticano. Pio XI havia sido muito valente ao denunciar as leis raciais fascistas de 1938. Paulo VI, para defender a Pio XII, desobedecendo aos prazos habituais, mandou publicar a documentação vaticana daqueles anos (Actes et documents du Saint-Siège relatifs à la seconde guerra mondiale, Libereria Editrice Vaticana, 1965-1981), mas destes documentos e das notas do editor se depreende que importantes documentos foram ocultados. Dizia o P. Anselm Albareda, diretor da Biblioteca de Montserrat e também da Vaticana, que quando se recortam documentos sempre ficam filagarses (resíduos). A obra, a meu entender, mais ponderada sobre esta questão é a do historiador Renato Moro, sobrinho de Aldo Moro, ‘La Iglesia y el exterminio de los judeus. Catolicismo, antisemitismo, nazismo’ (Desclée de Brouwer, Bilbao, 2004).
Acredito que no ânimo de Pio XII pesaram duas importantes razões. A primeira é sua conhecida simpatia pela Alemanha, ainda que certamente não pelo nazismo. As informações sobre o extermínio eram tão espantosas que a principio pareciam inacreditáveis. Quando Pio XII recebeu testemunhos múltiplos e irrefutáveis a guerra estava já inclinada francamente para o lado dos aliados e é provável que o Papa negasse a somar-se à propaganda que estes estavam fazendo contra o nazismo, como se temesse ser qualificado de oportunista ao somar-se ao lado vencedor.
A cada vez mais inevitável derrota alemã motivava ainda outra razão para o silêncio do Papa. A política de Pio XII (a italiana e a internacional) esteve sempre presidida por uma obsessão anticomunista. Seu grande projeto, ainda que não pudesse promovê-lo abertamente, era evitar a derrota da Alemanha para que esta pactuasse a paz com a Grã- Bretanha e se lançassem ambas contra a União Soviética. Não era fácil, porém uma condenação do nazismo houvesse feito metafisicamente impossível.