Todo Obama
LLUÍS BASSETS – El País - 01/11/2008
Tradução de Antonio de Freitas
LLUÍS BASSETS – El País - 01/11/2008
Tradução de Antonio de Freitas
Os dois livros publicados pelo candidato democrata nas eleições de terça-feira nos EUA possuem uma escrita brilhante e esclarecedora. Aí está seu ideário político, seu estilo conciliador, sua empatia pelas opiniões alheias e também um recorrido vital mais radical que suas idéias.
Tão difícil quanto conduzir a própria vida é conduzir a própria biografia. Em política, é más freqüente tropeçar com o político que é vítima de sua biografia que o contrario, uma biografia que apareça como a cuidada construção de uma personalidade sob cujo controle se desenvolve tanto a escrita sobre sua peripécia vital como a própria peripécia vital que lhe serve de base. Barack Obama, esse político que combina uma oratória emotiva e cálida com uma personalidade fria e tranqüila, é na atualidade um exemplo de maestria autobiográfica que permite modelar a própria vida como uma cuidada narração. Esta circunstância tem maior relevância no caso do candidato democrata à presidência dos Estados Unidos porque esta eleição e este tempo são os da utilização da vida como mensagem política. A mensagem política que funciona na época pós-ideológica e pós-política tem a forma de um relato aceitável e funcional que os cidadãos podem utilizar como identificador e orientador em suas vidas e em seus comportamentos eleitorais. O político pós-moderno necessita contar com uma potente biografia, capaz de sintonizar com as maiorias que devem lhe apoiar, e ao mesmo tempo, deve saber contar suas idéias políticas através de relatos, de historias concretas, com rostos, nomes, sobrenomes e alento vital.
Barack Obama demonstrou até agora que está extraordinariamente dotado para a política contemporânea. Em primeiro lugar, porque quando tinha apenas 33 anos e apenas podia intuir que algum dia se dedicaria à política parlamentar e chegaria a brigar pela presidência dos Estados Unidos, soube escrever uma indagação sobre sua identidade pessoal e familiar, dando-lhe a forma de um relato autobiográfico, que se converteu num sucesso editorial. Mais tarde, porque soube pôr sua própria historia biográfica a serviço de uma rápida e brilhante carreira política, cuja coroação entranha de novo um elemento narrativo potentíssimo: se vencer será o primeiro afro-americano que chega à presidência de um país em cuja fundação pesara decisivamente os grandes proprietários rurais escravagistas, travou uma guerra civil por causa da escravidão e até a década dos sessenta manteve leis segregacionistas.
O talento político de Obama é, diretamente, talento narrativo. Sabe contar sua própria vida e suas idéias como fruto de sua experiência vital e sabe utilizar as historias de vidas, as biografias, como apólogos que lhe servem para discutir e transmitir suas idéias políticas. É o escritor dos dois livros que publicou até agora e é também o escritor de muitos de seus discursos, que ademais se nutrem muito claramente de seus livros e se encaixam como uma luva em sua narrativa. Assim ocorre com seu discurso na Convenção Democrata de 2004, com o qual se fez conhecido em todo os Estados Unidos, com seu discurso de lançamento de sua candidatura presidencial em Springfield em 10 de fevereiro de 2007 ou com uma peça de oratória como seu discurso sobre a raça, já durante a campanha eleitoral, em resposta à crise provocada pelos sermões extremistas de seu mentor espiritual, o pastor Wright. Os ‘ghostwriters’ que trabalham com ele se parecem mais aos negros da oficina de Alexandre Dumas que aos ‘escreventes’ de discursos da maioria dos políticos, normalmente incapazes de escrever diretamente de sua mão uma peça de oratória e menos ainda um livro.
O resultado, ademais de brilhante, é muito útil. Todo Obama está ai. Tudo junto, cada episódio tem seu papel, tudo é coerente; não há que temer que responda a uma influência estranha ou sobrevinda: suas idéias políticas, seu estilo conciliador e dubitativo, sua empatia pelos pontos de vista alheios, incluídos os mais reacionários, o papel da identidade familiar na modelagem da própria vida ou a importância do sentido de pertencer a algo na fabricação da cidadania. Só com uma leve exceção, digna de ser sublinhada: seu itinerário vital é mais radical que suas idéias. A vida de Obama é a de um militante afro-americano, um advogado dos despossuídos, um agitador social e político que decide participar na vida parlamentar e aspira alcançar o máximo poder possível para pôr suas idéias em prática. Suas idéias, ao contrário, muito reflexivas e dialéticas, fruto da discussão e de uma boa capacidade de escuta, são muito moderadas e centristas, movidas quase sempre por um impulso conciliador. Obama não é o negro airado prototípico porque desde muito jovem, provavelmente desde o final de sua adolescência, se esforçou por distanciar sua vida e seu caráter desta imagem negativa.
“A origem dos meus sonhos” é uma excelente narração autobiográfica que interessou ao leitor norte-americano muito antes que seu autor se projetasse na política nacional. A indagação sobre o pai, que abandonou sua família quando o autor tinha dois anos e não voltou a vê-lo, a não ser de forma muito esporádica oito anos mais tarde, se converte ademais numa indagação sobre a identidade afro-americana, ainda na estela de ‘Raízes’, de Alex Haley, a novela que se converteu num seriado televisivo de impacto espetacular em 1977.
“A Audácia da esperança: reflexões sobre a reconquista do sonho americano” escrito ao começar sua carreira de senador em Washington e publicado em 2006, é um livro mais diretamente político, no qual também se percebe o talento pedagógico do professor de direito constitucional e um claro lampejo de ambição presidencial. Num e noutro não faltam alguns episódios pouco convincentes, resolvidos com talento narrativo que não consegue maquiar a vontade de fabricar uma imagem positiva de seu autor: em seu contato com a religião, por exemplo. O mesmo sucede com algum vazio, que já foi destacado, sobre seus anos em Nova York. Mas tampouco faltam episódios de sinal contrario de sincera expressão conflitante, alguns dos quais já foram aproveitados por seus rivais eleitorais. Em ambos há material suficiente para ir confrontando vida e literatura até agora e a partir de agora.
O nome do autor, do artista, é um elemento essencial na obra literária. É a marca que há que vender e que deve encaixar com o que significa. No caso de Obama é uma marca controvertida e discutível, que lhe dá pé também a uma pequena historia. Em setembro de 2001, segundo conta em ‘A Audácia da esperança: reflexões sobre a reconquista do sonho americano’, organizou um almoço com um consultor político que de cara lhe mostrou o quanto havia piorado as coisas para Obama depois do ‘11 de Setembro’: "É realmente muita má sorte. Agora, é claro, você não pode mudar de nome. Os votantes suspeitam deste tipo de coisa. Talvez se estivesse no principio da carreira poderia utilizar um pseudônimo ou algo assim, mais agora ...". Com este nome triunfou na edição e dentro de 72 horas tentará fazê-lo na historia.
Tão difícil quanto conduzir a própria vida é conduzir a própria biografia. Em política, é más freqüente tropeçar com o político que é vítima de sua biografia que o contrario, uma biografia que apareça como a cuidada construção de uma personalidade sob cujo controle se desenvolve tanto a escrita sobre sua peripécia vital como a própria peripécia vital que lhe serve de base. Barack Obama, esse político que combina uma oratória emotiva e cálida com uma personalidade fria e tranqüila, é na atualidade um exemplo de maestria autobiográfica que permite modelar a própria vida como uma cuidada narração. Esta circunstância tem maior relevância no caso do candidato democrata à presidência dos Estados Unidos porque esta eleição e este tempo são os da utilização da vida como mensagem política. A mensagem política que funciona na época pós-ideológica e pós-política tem a forma de um relato aceitável e funcional que os cidadãos podem utilizar como identificador e orientador em suas vidas e em seus comportamentos eleitorais. O político pós-moderno necessita contar com uma potente biografia, capaz de sintonizar com as maiorias que devem lhe apoiar, e ao mesmo tempo, deve saber contar suas idéias políticas através de relatos, de historias concretas, com rostos, nomes, sobrenomes e alento vital.
Barack Obama demonstrou até agora que está extraordinariamente dotado para a política contemporânea. Em primeiro lugar, porque quando tinha apenas 33 anos e apenas podia intuir que algum dia se dedicaria à política parlamentar e chegaria a brigar pela presidência dos Estados Unidos, soube escrever uma indagação sobre sua identidade pessoal e familiar, dando-lhe a forma de um relato autobiográfico, que se converteu num sucesso editorial. Mais tarde, porque soube pôr sua própria historia biográfica a serviço de uma rápida e brilhante carreira política, cuja coroação entranha de novo um elemento narrativo potentíssimo: se vencer será o primeiro afro-americano que chega à presidência de um país em cuja fundação pesara decisivamente os grandes proprietários rurais escravagistas, travou uma guerra civil por causa da escravidão e até a década dos sessenta manteve leis segregacionistas.
O talento político de Obama é, diretamente, talento narrativo. Sabe contar sua própria vida e suas idéias como fruto de sua experiência vital e sabe utilizar as historias de vidas, as biografias, como apólogos que lhe servem para discutir e transmitir suas idéias políticas. É o escritor dos dois livros que publicou até agora e é também o escritor de muitos de seus discursos, que ademais se nutrem muito claramente de seus livros e se encaixam como uma luva em sua narrativa. Assim ocorre com seu discurso na Convenção Democrata de 2004, com o qual se fez conhecido em todo os Estados Unidos, com seu discurso de lançamento de sua candidatura presidencial em Springfield em 10 de fevereiro de 2007 ou com uma peça de oratória como seu discurso sobre a raça, já durante a campanha eleitoral, em resposta à crise provocada pelos sermões extremistas de seu mentor espiritual, o pastor Wright. Os ‘ghostwriters’ que trabalham com ele se parecem mais aos negros da oficina de Alexandre Dumas que aos ‘escreventes’ de discursos da maioria dos políticos, normalmente incapazes de escrever diretamente de sua mão uma peça de oratória e menos ainda um livro.
O resultado, ademais de brilhante, é muito útil. Todo Obama está ai. Tudo junto, cada episódio tem seu papel, tudo é coerente; não há que temer que responda a uma influência estranha ou sobrevinda: suas idéias políticas, seu estilo conciliador e dubitativo, sua empatia pelos pontos de vista alheios, incluídos os mais reacionários, o papel da identidade familiar na modelagem da própria vida ou a importância do sentido de pertencer a algo na fabricação da cidadania. Só com uma leve exceção, digna de ser sublinhada: seu itinerário vital é mais radical que suas idéias. A vida de Obama é a de um militante afro-americano, um advogado dos despossuídos, um agitador social e político que decide participar na vida parlamentar e aspira alcançar o máximo poder possível para pôr suas idéias em prática. Suas idéias, ao contrário, muito reflexivas e dialéticas, fruto da discussão e de uma boa capacidade de escuta, são muito moderadas e centristas, movidas quase sempre por um impulso conciliador. Obama não é o negro airado prototípico porque desde muito jovem, provavelmente desde o final de sua adolescência, se esforçou por distanciar sua vida e seu caráter desta imagem negativa.
“A origem dos meus sonhos” é uma excelente narração autobiográfica que interessou ao leitor norte-americano muito antes que seu autor se projetasse na política nacional. A indagação sobre o pai, que abandonou sua família quando o autor tinha dois anos e não voltou a vê-lo, a não ser de forma muito esporádica oito anos mais tarde, se converte ademais numa indagação sobre a identidade afro-americana, ainda na estela de ‘Raízes’, de Alex Haley, a novela que se converteu num seriado televisivo de impacto espetacular em 1977.
“A Audácia da esperança: reflexões sobre a reconquista do sonho americano” escrito ao começar sua carreira de senador em Washington e publicado em 2006, é um livro mais diretamente político, no qual também se percebe o talento pedagógico do professor de direito constitucional e um claro lampejo de ambição presidencial. Num e noutro não faltam alguns episódios pouco convincentes, resolvidos com talento narrativo que não consegue maquiar a vontade de fabricar uma imagem positiva de seu autor: em seu contato com a religião, por exemplo. O mesmo sucede com algum vazio, que já foi destacado, sobre seus anos em Nova York. Mas tampouco faltam episódios de sinal contrario de sincera expressão conflitante, alguns dos quais já foram aproveitados por seus rivais eleitorais. Em ambos há material suficiente para ir confrontando vida e literatura até agora e a partir de agora.
O nome do autor, do artista, é um elemento essencial na obra literária. É a marca que há que vender e que deve encaixar com o que significa. No caso de Obama é uma marca controvertida e discutível, que lhe dá pé também a uma pequena historia. Em setembro de 2001, segundo conta em ‘A Audácia da esperança: reflexões sobre a reconquista do sonho americano’, organizou um almoço com um consultor político que de cara lhe mostrou o quanto havia piorado as coisas para Obama depois do ‘11 de Setembro’: "É realmente muita má sorte. Agora, é claro, você não pode mudar de nome. Os votantes suspeitam deste tipo de coisa. Talvez se estivesse no principio da carreira poderia utilizar um pseudônimo ou algo assim, mais agora ...". Com este nome triunfou na edição e dentro de 72 horas tentará fazê-lo na historia.
Livros
A origem dos meus sonhos – ISBN: 9788573125948;
A Audácia da esperança: reflexões sobre a reconquista do sonho americano (The Audacity of hope: Thoughts on reclaiming the american dream) - ISBN: 9788576352198.