O talento do leitor
ENRIQUE VILA-MATAS – El País - 23/04/2009
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
ENRIQUE VILA-MATAS – El País - 23/04/2009
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
Quando despertaram do sonho das hipotecas e daquele poderio econômico que haviam acreditado ser eterno, quando despertaram em pleno centro do redemoinho que arrasava tudo, o livro seguia aí. Era assombroso, nada nem ninguém havia conseguido alterá-lo, ninguém o havia movido do lugar de sempre. Olharam incrédulos, parecia mentira. Ali estava, totalmente imperturbável. Anos de barbárie não haviam podido com ele e agora, a princípios daquele século que havia começado com a grande tempestade, o livro estava ali para recordar-lhes ou simplesmente informar-lhes, se ainda não sabiam, que a literatura fala uma linguagem distinta, não opressora, muito diferente do resto das linguagens perversas que nos escravizam com suas tiranias cotidianas: a linguagem econômica, política, religiosa, familiar, televisiva.
Tudo isto não ocorreu em outro tempo, mas está sucedendo agora mesmo, 23 de abril de 2009. Parece como se o Prêmio Cervantes que se entrega a Juan Marsé tivesse aberto horizontes e todos agora regressássemos ao velho costume do bom livro e a lembrar que esse grande livro sempre esteve aí e é a distração por excelência, porque nos permite a ilusão de um domínio do tempo, além das catástrofes e crises. Essa ilusão nos afasta do porvir implacável que conduz a essa morte que se esconde nos relógios numa novela de Laurence Sterne. Herdeiro legítimo de Cervantes, Sterne renovou a relação do escritor com o leitor, essa relação que ultimamente parece regressar a um primeiro plano, pois existe a impressão de que algo começa a se mover. Em pleno sonho das hipotecas e do bezerro de ouro da novela gótica, se forjou a estúpida lenda do leitor passivo. A derrota do monstro está abrindo passo à reaparição do leitor com talento e se propõem os novos termos do contrato moral entre autor e público. Respiram de novo os escritores que se matam por um leitor ativo, por um leitor aberto o suficientemente como para permitir na sua mente o desenho de uma consciência radicalmente diferente da sua própria.
Se se exige talento a um escritor, deve se exigir também ao leitor. Porque não há que se enganar: a viagem da leitura passa muitas vezes por terrenos difíceis que exigem tolerância, espírito livre, capacidade de emoção inteligente, desejos de compreender o outro e de se acercar a uma linguagem distinta à de nossas tiranias cotidianas. Como diz Vilém Vok, não é tão simples sentir o mundo como sentiu Kafka, um mundo no qual se nega o movimento e resulta impossível sequer ir de um povoado a outro. As mesmas habilidades que se necessitam para escrever se necessitam para ler. Os escritores falham aos leitores, porém também ocorre o contrário e os leitores falham aos escritores quando só buscam nestes a confirmação de que o mundo é como eles o veem. Os novos tempos trazem essa revisão e renovação do pacto exigente entre escritores e leitores. Volta o leitor com talento. E hoje, ademais, premiam a Juan Marsé. Surpreendente felicidade dupla num mundo sem alegrias.
Tudo isto não ocorreu em outro tempo, mas está sucedendo agora mesmo, 23 de abril de 2009. Parece como se o Prêmio Cervantes que se entrega a Juan Marsé tivesse aberto horizontes e todos agora regressássemos ao velho costume do bom livro e a lembrar que esse grande livro sempre esteve aí e é a distração por excelência, porque nos permite a ilusão de um domínio do tempo, além das catástrofes e crises. Essa ilusão nos afasta do porvir implacável que conduz a essa morte que se esconde nos relógios numa novela de Laurence Sterne. Herdeiro legítimo de Cervantes, Sterne renovou a relação do escritor com o leitor, essa relação que ultimamente parece regressar a um primeiro plano, pois existe a impressão de que algo começa a se mover. Em pleno sonho das hipotecas e do bezerro de ouro da novela gótica, se forjou a estúpida lenda do leitor passivo. A derrota do monstro está abrindo passo à reaparição do leitor com talento e se propõem os novos termos do contrato moral entre autor e público. Respiram de novo os escritores que se matam por um leitor ativo, por um leitor aberto o suficientemente como para permitir na sua mente o desenho de uma consciência radicalmente diferente da sua própria.
Se se exige talento a um escritor, deve se exigir também ao leitor. Porque não há que se enganar: a viagem da leitura passa muitas vezes por terrenos difíceis que exigem tolerância, espírito livre, capacidade de emoção inteligente, desejos de compreender o outro e de se acercar a uma linguagem distinta à de nossas tiranias cotidianas. Como diz Vilém Vok, não é tão simples sentir o mundo como sentiu Kafka, um mundo no qual se nega o movimento e resulta impossível sequer ir de um povoado a outro. As mesmas habilidades que se necessitam para escrever se necessitam para ler. Os escritores falham aos leitores, porém também ocorre o contrário e os leitores falham aos escritores quando só buscam nestes a confirmação de que o mundo é como eles o veem. Os novos tempos trazem essa revisão e renovação do pacto exigente entre escritores e leitores. Volta o leitor com talento. E hoje, ademais, premiam a Juan Marsé. Surpreendente felicidade dupla num mundo sem alegrias.
* 23 de abril é o Dia do Livro, em lembrança do aniversário de morte de Cervantes e Shakespeare. E, também, é dia de Sant Jordi, em Barcelona.