A argentina Mika Feldman, durante a Guerra Civil Espanhola./ARCHIVO CENTELLES
(CENTRO DOCUMENTAL DE LA MEMORIA HISTÓRICA)
‘La capitana’ Mika sai do esquecimento
A escritora Elsa Osorio reconstrói a assombrosa biografia da argentina Mika Feldman, que dirigiu uma coluna de milicianos durante a Guerra Civil Espanhola.
Tereixa Constenla – El País – Babelia - Madrid – 27-01-12
Tradução de Antonio de Freitas
Há vidas carregadas de literatura. A de Mika Feldman de Etchebéhère é pura novela desde que nasceu em ‘Entre Rios’, na colônia argentina fundada por judeus refugiados da perseguição czarista, e morreu em Paris cercada por amigos ateus e abençoada por sua empregada. Entre 1902, ano de seu nascimento, e 1992, o de sua morte, o mundo se convulsionou muito. E Mika tinha o costume de estar no epicentro destas convulsões, fosse em Berlim de 1933 em plena ascensão do nazismo ou em Madri acossada pelos sublevados contra a Segunda República em 1936.
Não foi apenas mais um entre os milhares de estrangeiros - idealistas e/ou ideologizados— que acudiram à Espanha a pegar seu fuzil. Mika, comunista alérgica aos carnês e amante da dissidência que sempre a distanciou do aparato soviético, chegou com seu marido Hipólito pouco antes do golpe militar de julho de 36. Parecia outra escala a mais na sua viagem internacional até a revolução, que lhes havia arrancado da Patagônia e levado a Paris e Berlim. Não tinham mais pátria que as ideas.
Porém, Espanha foi muito diferente. Começou uma guerra e uma revolução. Eles queriam ganhar a ambas. “Na tarde de 18 de julho começou nosso andar em busca de armas e de alistamento, de um sindicato da UGT a outro da CNT, entre grupos de jovens quase crianças e homens quase anciãos, entre rumores e discursos, entre canções e consignas, misturadas à maré que subia de todos os bairros e baixava sobre a ‘Puerta del Sol’. A todos nos tremiam as mãos ansiosas por uma arma”, narrou a própria Mika Feldman numa carta inédita, encontrada pelo historiador argentino Horacio Tarcus.
Em Espanha ocorreu algo irreversível: a morte de Hipólito, chefe de uma coluna de 150 milicianos, em agosto de 1936. Mika, que até então havia contribuído, desde a retaguarda, com trabalhos sanitários, dá um passo adiante. Mosquetão em riste, os milicianos do POUM (‘Partido Obrero de Unificación Marxista’) aceitam seu mando com a mesma naturalidade com que se deixam cuidar por ela durante as batalhas de ‘Sigüenza’, ‘Moncloa’ e ‘Pineda de Húmera’.
Aquela dentista argentina que até 1936, a duras penas, aceitava “o caminho das armas” como instrumento revolucionário passou a compartilhar o que havia expressado uma miliciana que desejava uma divisão igualitária de tarefas: “Não vim ao front para morrer pela revolução com um trapo de cocinha na mão”. E talvez tenha sido a mulher com maior patente militar durante a Guerra Civil Espanhola. Naqueles dias seu arrojo militar alimentou certa lenda, ainda que não tenha escapado da perseguição estalinista desatada contra o POUM. Finalmente o apagão dos vencedores sobre os vencidos dissipou-a da memória coletiva e a relegou a redutos militantes, como a ‘Fundación Andreu Nin’. Lutou pelos espanhóis, ainda que poucos conheçam agora sua historia.
A autora acredita que sua vida haveria sido inverossímil num personagem fictício
Um dia de março de 2007, a escritora Elsa Osorio (Buenos Aires, 1952) visitou a casinha de Paris na qual Mika Feldman havia passado incontáveis horas de sua velhice entre plantas. “Encontrei um jardim abandonado e pareceu-me que esse abandono era uma metáfora de sua memória”. E nessa sensação Osorio encontrou o empurrão definitivo para montar sua novela ‘La Capitana’ (Siruela), na qual refaz a intensa vida de uma mulher que participou dos acontecimentos mais transcendentais do século XX guiada por sua idea de justiça, igualdade e liberdade. “Pertenceu a um mundo que não se conhece, que já não existe mais esse tipo de gente”, reflexiona a escritora.
Assumiu o mando de 150 homens ao morrer seu marido numa batalha
Elsa Osorio levava anos acorrentada ao fantasma de Mika Feldman, desde que o escritor argentino Juan José Hernández lhe falou dela a meados dos anos oitenta. Rastreou suas pegadas pouco a pouco, com a paciência de um sioux: um artigo escrito por ela em 1945, intitulado ‘El niño guerrillero’; encontros com amigos; consulta a notas manuscritas e diários; descobrimento da ‘Fundación Andreu Nin’, guardiões da memória do POUM, e busca em arquivos na Espanha, França e nos Estados Unidos.
Quanto mais mergulhava na biografia, mais assombrosa lhe resultava. “Se eu tivesse inventado um personagem assim, seria inacreditável: alguém que conheceu a Breton e era amiga de Cortázar, que foi dentista na Patagônia, que esteve à frente de uma coluna na guerra... Pareceu-me uma mulher extraordinária, uma espécie de Che Guevara que apostou a própria vida”, explica Osorio.
A novela também será publicada, entre outros, nos países com pegadas de Hipólito e Mika, como Alemanha, França e Argentina. Em todos tentaram mudar o mundo, o mundo era sua pátria. Quando, em ‘La Capitana’, um exilado argentino a anima em Paris a participar na guerra das Malvinas em 1982 com as seguintes palavras “E que bom seria para ti, finalmente uma guerra tua, de teu país, não uma guerra distante”, Mika fica indignada e chama seu amigo Julio Cortázar para buscar um cúmplice. A nenhum lhes cabia o patriotismo numa bandeira.