segunda-feira, abril 26, 2004

Os cravos de abril

Sei que estás em festa, pá
Fico contente
E enquanto estou ausente
Guarda um cravo pra mim
Chico Buarque,

em "Tanto mar", 1975

O jovem Rafael Guardiola ignorava o porquê de tantos soldados armados e tanques naquela ponte de entrada a Lisboa. Na companhia de seu pai, aquele jovem espanhol já tinha ido a Portugal muitas vezes, em visitas aos clientes da empresa paterna. A novidade daquela viagem até então, estava no carro novo que ele dirigia. Mas de repente, foram mandados sair do carro por soldados armados, e na velha ponte de acesso a Lisboa foram deitados e interrogados. O quê Rafael e seu pai não sabiam era que naquele 25 de abril de 1974 havia começado a devolução de um país a seu povo, havia começado a Revolução dos Cravos.

O país de Abril nasceu naquela manhã cinzenta de 25 de abril de 1974, através das ordens do Capitão Salgueiro Maia, que passou aquele dia agarrado à sua G3, imortalizada pelas fotos. Os Capitães de Abril estavam acompanhados de uma juventude ávida por Liberdade, a palavra proibida naquele velho Portugal que despencava sobre o caduco Império colonial africano. O sinal para o começo da libertação foi a canção de Zeca Afonso “Grândola, Vila Morena”, que havia participado do I Encontro da Canção Portuguesa, ocorrido em março, que tocou ao amanhecer do dia 25 de abril pela radio Renascença. O lema daqueles jovens militares – porque foi a juventude quem fez a revolução dos Cravos - que devolveram Portugal à Europa era “Democratizar, Descolonizar, Desenvolver”.

O Portugal de Antonio de Oliveira Salazar (1889-1970) era um país dissociado do mundo e distante da Europa. Era o país do “orgulhosamente sós”, como afirmava a propaganda oficial, atrasado, pobre e inculto. Um país onde as enfermeiras não podiam casar. Como escreve o sociólogo português Mário Contumélias, ao recordar os 30 anos da Revolução dos Cravos: “Último império colonial do Ocidente, desafiado por movimentos de libertação em três frentes africanas, o país via os mais jovens dos seus filhos partirem para guerra, onde demasiados morriam, e da qual muitos regressavam diminuídos. A mágoa enchia o coração dos que cá ficavam. A revolta abastecia as prisões de presos políticos. O exílio, a censura e a PIDE amordaçavam os outros, os que viviam em liberdade vigiada.”

Portugal, empurrava milhares de jovens a combater na guerra colonial que mantinha em três frentes, contra os movimentos de libertação de Angola, Guiné e Moçambique, então denominadas “províncias ultramarinas”, um Portugal de aquém e de além - mar, em África. O país foi condenado em todos os fóruns internacionais a começar pela ONU, por não reconhecer o direito à autodeterminação dos povos.

O primeiro comunicado do Movimento das Forças Armadas foi ao ar nas ondas da Radio Clube Português pela voz de Joaquim Furtado, e pedia bom senso aos mandos militares do regime para que fossem evitados confrontos. O Movimento das Forças Armadas esclarece sua intenção de não fazer correr uma gota de sangue de qualquer português. Na verdade, esse apelo parece que surtiu efeito, pois praticamente não houve derramamento de sangue em todo o país.

Abril é o mês dos cravos em Portugal, e os cravos que foram colocados nas lapelas e nos fuzis dos soldados revolucionários pela população lisboeta foram usados mais tarde para denominar a Revolução de Abril de Revolução dos Cravos.

A geografia da cidade de Lisboa ficará para sempre guardada na memória daquele longínquo dia de 1974, através da Avenida da Ribeira das Naus, Rua Augusta, Praça do Comércio, Praça do Município, Terreiro do Paço, Rua do Arsenal, Largo Camões, Largo do Carmo, o Chiado, o Rossio, Rua António Maria Cardoso... por onde a historia foi feita.

O Capitão de Cavalaria Salgueiro Maia sai de cena como entrou, naquela madrugada de abril, quando despertou seus homens na Escola Prática de Cavalaria, em Santarém, para derrubar o governo anacrônico de Lisboa. O homem que deu a Liberdade a Portugal foi mandado para as ilhas Açores, para administrar o Presídio Militar de Santa Margarida. Prematuramente morto, seu funeral foi acompanhado por ex-Presidentes portugueses, ao som de “Grândola, Vila Morena”.

Dizem que ao entrar no tanque que o arrancaria do Quartel do Carmo, onde se encontrava refugiado, o então Presidente de Governo português Marcello Caetano e mantedor da ditadura salazarista pronunciou em forma de desabafo: “- É a vida”. Sim, era a vida que começava para uma nação que recebia das mãos de suas Forças Armadas seu país, atrasado e mudo, por quase meio século de autoritarismo e silêncio. Naquele 25 de abril de 1974 a vida voltou a Portugal.

De 16 de maio de 1974 a 23 de junho de 1976 passaram seis governos provisórios à frente dos militares de esquerda, quando então foram convocadas as eleições para a Assembléia Constituinte. Em 2 abril de 1976 foi promulgada a Constituição e Mario Soares, líder dos socialistas, ganha as eleições de 25 de abril. Em 1º de janeiro de 1986, Portugal ingressa junto com a Espanha na Comunidade Européia.

O jovem Rafael jamais esqueceu a Revolução dos Cravos, que hoje cumpriu 40 anos, e que levou a empresa de seu pai a falência, pois seus clientes portugueses acabaram fugindo para o Brasil sem pagar ninguém. A sua Espanha ainda continuaria sob o domínio do general Franco, sem nunca sentir o sabor de derrotar a ditadura. Anos mais tarde, Rafael levaria a um doutorando brasileiro a conhecer Lisboa. Chegamos de madrugada e estacionamos na Praça do Comercio, subimos pela Baixa, seguindo a pé pela Avenida da Liberdade, debaixo de uma leve chuva matinal que molhava a lembrança de outra época, que já é apenas lembrança.

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De: Rafael Guardiola
Enviado el: martes, 27 de abril de 2004 11:53:51
Para: Antonio Freitas Jr.
Asunto: Re: Os cravos de abril - Antonio de Freitas Jr.

Querido Antonio:
¡Joder! has conseguido emocionarme con tu artículo.
Por cierto, tú no conocías tantas calles de Lisboa...
Un fortísimo abrazo.

Rafa
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segunda-feira, abril 19, 2004

O retrato na parede

"Bota o retrato do velho
bota no mesmo lugar
que o sorriso do velhinho
faz a gente trabalhar."
Haroldo Lobo e Mariano Pinto, 1951


Neste momento em que o país vive uma crise política que pode desestabilizar a base de sustentação fática do governo federal, recordo de Getúlio Dorneles Vargas, que governou por muitos anos o Brasil, de forma ditatorial de 1930 a 1945, e de forma eleita de 1951 a 1954. Vargas deixou lições valiosíssimas sobre os políticos brasileiros, não somente lições de “política real”, mas também importantes lições sobre comportamento e caráter da classe política nacional. Hoje, dia 19 de abril, comemora-se 122 anos de seu nascimento, ocorrido em São Borja, Rio Grande do Sul, em 1882. Varias exposições e palestras lembram durante toda a semana a este brasileiro ímpar, que segue com seu retrato gravado no imaginário nacional, como afirmava a marchinha de 1951, composta por Haroldo Lobo e Mariano Pinto, o retrato do velho ainda seguirá por muitos anos.

Getúlio sempre partiu do principio de que era preciso pensar no todo a partir do local. Ele nunca deixou de ser de São Borja – “meu rincão”, “minha tribo”, dizia - de ser gaúcho, ou como ele dizia, do Rio Grande, para ser brasileiro. Seus valores eram os valores da sociedade gaúcha de sua época. Vargas sempre valorizou sua posição de poder local e regional para seguir à frente do poder total. Pelo Partido Republicano Rio Grandense elegeu-se deputado estadual, federal e Governador do Rio Grande do Sul, além de ser Ministro da Fazenda do governo Washington Luis, entre 1923 e 1930. Ao perder as eleições presidenciais lidera o Movimento de 1930 que o leva à Presidência da República.

Seu primeiro governo, de 1930 a 1945, autoritário e antidemocrático, promoveu amplas reformas no país, destacando-se a criação do Ministério do Trabalho, Indústria e Comércio e a promulgação das primeiras leis trabalhistas. Durante esse período houve a Revolução Constitucionalista de São Paulo em 1932, que gerou mais mortos que durante a participação brasileira na II Guerra Mundial. A Constituição de 1934 não foi levada a sério por ninguém, pois o golpe já estava escrito nas páginas daquele momento histórico a nível mundial. Assim, Getulio impõe a Carta de 1937, fundando o que se denominou de o “Estado Novo”, e continua à frente do executivo nacional, até 1945.

Realmente aqueles eram tempos gloriosos, pois havia muita velocidade nas transformações sociais e políticas mundiais. Havia o Fascismo de Mussolini, o Nazismo de Hitler e o Comunismo de Stalin. A Democracia liberal encontrava-se ferida de morte e a queda da República Espanhola nas mãos do nacional-catolicismo de Franco era apenas mais um exemplo deste fato. O Brasil de Getúlio Vargas e do seu “Estado Novo” alia-se aos EUA, e mesmo possuindo um ditador em casa, foi aos campos da Itália lutar pela democracia. Que enorme contradição habitou em nossos corações nessa época.

A saída do poder e a volta triunfal nos braços da democracia em 1951 legitimaram em grande parte seu governo inicial autoritário e mais tarde ditatorial. O suicídio em agosto de 1954 apenas confirmou uma característica presente desde aquele primeiro momento em que saiu do Rio Grande para assumir o poder nacional em 1930: a derrota política significa a vitória da morte. Desde seus primeiros escritos ele já revelava essa ligação entre a política e a vida, de maneira que o fracasso político fatalmente lhe conduziria à morte.

Com a publicação dos diários de Vargas pela Fundação Getúlio Vargas em 1995, num esforço louvável de sua neta Celina Vargas do Amaral Peixoto, veio à tona uma série de informações privilegiadas sobre esse homem que gostava mais de ser interpretado do que de se explicar.

Os diários começam em outubro de 1930, quando o então governador do Rio Grande do Sul tramava o que a historiografia nacional denomina “Revolução de 30”. Vargas, justifica o “tardio” inicio desta empreitada, ou seja, escrever um diário, atribuindo à mocidade tantos episódios interessantes que por si só vão se apagando da memória. Em seguida, afirma uma lição sublime, digna de um experto em conhecer os homens: “Depois, o trato contínuo com os homens e as observações feitas sobre os mesmos em fases e circunstâncias diferentes nos habilitam a um juízo mais seguro”.

Sobre os boatos, costume nacional, afirmava Vargas: “Já de muito prevenido pelos boatos nestas épocas de exaltação, não lhes dou maior crédito”. E noutro momento: “É preciso ter o espírito muito resistente a todos estes boatos e nervosismos para não se impressionar”. Vargas era um homem de poucas palavras. “Ouvi calado”, escreveu muitas vezes diante de protestos, reclamações, denuncias e tentativas de intrigas nas suas colunas.

Getúlio povoará ainda por muito tempo nosso imaginário de poder nacional. Seu populismo carismático ainda servirá de modelo para futuras gerações de governantes. Vargas foi um andarilho que percorreu todas as esferas do poder local, provincial e nacional, e dessa maneira cumpriu seu destino presente no sobrenome associado aos ciganos espanhóis. Num país onde todos pensam com o coração, esse homem pensava com a cabeça.

domingo, abril 11, 2004

A Era do Medo

Os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001 nos EUA, bem como os ocorridos em Madri, na Espanha, no dia 11 de março deste ano, produziram varias conseqüências e dentre elas destacamos a cultura da insegurança generalizada.

O século XXI que começara sob o signo da esperança - a queda do muro de Berlim e a volta da Democracia como padrão de civilização -, se transformou rapidamente depois dos mega atentados terroristas em um momento de medo e de radicalização de posições no campo das idéias, como verificamos com a Teoria do Choque de Civilizações, do professor Samuel Huntington - da Universidade de Harvard, a Teoria da Superioridade da Civilização Ocidental, da neodireitista italiana Oriana Fallaci. No campo da política internacional a Teoria dos Ataques Preventivos, levado a cabo pelo governo dos EUA, demonstra que na nova ordem mundial, o império hegemônico não irá esperar ser agredido para manter-se à frente de seu poder militar inconteste.

Ninguém se sente seguro, em nenhum lugar do planeta. Nem mesmo aqueles que se sentiam mais seguros, como os estadunidenses. Exatamente como as epidemias assombravam a Idade Média, as sociedades atuais convivem com o fantasma do medo.

Ao cometerem os atentados suicidas de Nova York e Madri, os terroristas demonstraram haver extirpado o medo da morte, o medo básico entre todos os medos de qualquer pessoa. A vulnerabilidade sentida pelos cidadãos depois dos atentados não existia desde muitas gerações, e nas sociedades ocidentais desenvolvidas já se imaginava esquecida. O perigo que representa as ameaças de “antrax” e da guerra biológica significam a globalização do medo à morte, sentimento que parecia esquecido pelas sociedades do bem estar.

Vivemos a “Era do medo total”, na feliz expressão de Herman Tertsch, que afirma: “É um medo muito especial, generalizado e compartilhado, confessado, contagioso, exagerado, retroalimentado nesta era da mídia em que todas as sensações se multiplicam e se estendem a velocidade de desmaio. Ainda não sabemos como mudara nossas vidas, nossas relações interpessoais, sociais, políticas e internacionais, mas em todo mundo germina a consciência de que nada será igual ao que era”.

Hoje em Madri as pessoas parecem que vivem uma psicose coletiva, que faz com que todos se vigiem nos transportes coletivos. Durante os protestos pelos atentados, os cartazes mas lidos eram os que diziam: Todos nós íamos nesse trem.

Por enquanto vivemos no Brasil sem medo a ataques terroristas. Como brasileiros, temos nossos medos típicos de países subdesenvolvidos, como a alta do dólar, o aumento do risco país e a volta da inflação, e medos próprios, derivados da nossa peculiar situação, como o de encarar a pobreza generalizada fruto da pior concentração de renda do mundo.

Os medos sempre acompanharam a raça humana na sua trajetória neste planeta, e muitas vezes são necessários até para que continuemos vivos, lutando pela sobrevivência. Entretanto, é necessário saber domá-los, controlando-os sob os olhos da razão e subjugando-os aos princípios da educação. Como disse certa vez o constitucionalista espanhol Antonio Colomer, “aprender a resistir e exorcizar esses medos é a finalidade superior da educação para a liberdade solidária”.

quinta-feira, abril 01, 2004

Tempos esplendorosos

A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá
Chico Buarque
“Roda Viva” – 1967

Antonio de Jesus acordou cedo naquele 31 de março de 1964, como fazia sempre desde que chegara a Teresina para estudar. No auge dos seus dezenove anos, cursava o 2º ano científico no Liceu piauiense. Somente a noite, ao chegar na praça do colégio, é que se deu conta que alguma coisa diferente havia quebrado a rotina daquele instante. O clima na praça era de rebelião. Muitos de seus colegas estudantes pobres como ele, que moravam em “repúblicas”, foram presos. O Exército dera um golpe no Presidente Jango. Naquela noite não houve aula, e ele voltou pra casa mais cedo.

Eram tempos esplendorosos, tempos em que ainda havia homens públicos preocupados com o Brasil, época em que se discutia verdadeiramente os problemas brasileiros, as opções ideológicas para deixar de uma vez por todas o subdesenvolvimento e avançar no caminho que levava em direção ao “paraíso” do primeiro mundo. Havia Luiz Carlos Prestes, que chegara a reunir-se com o todo poderoso Nikita Kruschev, mandatário da finada União Soviética. Havia a Guerra Fria.

Nas palavras de Fernando Gabeira, um protagonista daquele período, existe uma grande diferença pro nosso momento presente: “Eis uma das diferenças que podemos ressaltar entre aquele momento e o que vivemos hoje. Mesmo equivocadas, havia diferentes idéias na cabeça dos personagens. Ao passo que, hoje, quase todos terminam defendendo o estado liberal e, como não poderia deixar de ser, os seus carguinhos no governo”.

No outono de 1964, a história do Brasil deu uma guinada que somente voltaria a seu curso normal vinte anos mais tarde. O regime constitucional de 1946 estava com os dias contados.

Em setembro de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, na tentativa de forçar seu retorno pela pressão da caserna que jamais aceitaria a posse de Jango, a aprovação do Parlamentarismo – genial obra de engenharia política do futuro Primeiro Ministro Tancredo Neves - salvou as aparências. Mas, a esmagadora aprovação da volta do presidencialismo, através do plebiscito de janeiro de 1963, reanimou a hostilidade à legalidade.

Jango, como era conhecido, havia sido Vice-presidente de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros, através de candidaturas opostas, quando a legislação eleitoral permitia a eleição de Presidente e Vice separadamente. Filiado ao PTB getulista, tornara-se amigo de Getúlio durante seu exílio em São Borja.

O impasse estava servido. Apesar de amplos setores sociais estivessem de acordo sobre a necessidade de reformas, o congresso nacional estava dividido, e a falta de confiança e disposição para dialogar de ambas partes causou a paralisia. Faltou compromisso e instituições. Enquanto isso, o governo Goulart perdia o controle de uma crise gerada em parte por ele mesmo. De repente, o governo estava ilhado e a oposição apavorada. Os dois lados aguardavam um golpe, só não se sabia de que lado viria.

Então, na noite de 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho, que mais tarde se qualificou de “Vaca Fardada”, sai de Juiz de Fora disposto a derrubar o Presidente, e consegue. Depois vieram cinco generais em vinte e um anos. O resto é história.

Por que os militares tinham tanta antipatia por aquele Presidente latifundiário gaúcho e boêmio afeito a coristas? Seria por causa do medo de que aquele latifundiário criasse uma “república sindicalista” ao estilo peronista? Seria por causa das famosas e vazias “reformas de base”? Sobre elas escreveu Augusto Nunes: “Vistas em retrospectiva, as reformas pregadas por Jango lembram o programa de um PFL. Incluíam a extensão do direito de voto aos analfabetos, a desapropriação de faixas de terra à margem das rodovias, a nacionalização das refinarias e outras mudanças hoje nada assustadoras. Na época, era coisa de comunista”.

Para Jarbas Passarinho, que mandou às favas os escrúpulos de consciência na assinatura do AI-5, 13 de dezembro de 1968 foi “um golpe de Estado que preveniu um autogolpe em marcha acelerada”. Para ele, o golpe foi produto do medo.

Hoje já sabemos que os militares não estavam sozinhos, pois contaram com apoio político e popular. A grande imprensa apoiou as forças golpistas, à medida que a crise se agravava, desde o segundo semestre de 1963 e de maneira destaca no principio de 1964.

A campanha de desestabilização do governo Goulart contou ainda com as “carolas de rosário”, patrocinadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, através do movimento de mulheres organizadas como a Campanha da Mulher pela Democracia – CAMDE, a Liga da Mulher Democrata – LIMDE e a União Cívica Feminina – UCF. Elas foram a base para as famosas “Marchas da família, com Deus, pela liberdade”, que reuniram milhares de pessoas e que suas imagens justificaram durante anos o regime militar.

Sem contar com o decisivo apoio da frota naval estadunidense, que ficou na costa, pronta pra prestar socorro aos golpistas caso se iniciasse uma guerra civil. Os EUA acompanhavam muito de perto a conspiração através da rede “Operação Brother Sam”. O jornalista político Carlos Chagas explica que essa ligação dos setores golpistas militares brasileiros com os EUA começou do contato mantido na II Guerra Mundial, tendo o coronel Vernon Walters, adido militar da embaixada americana no Brasil em 1964, o principal elemento de ligação, desde que atuou como elemento de ligação entre o comando do Exército do general Mark Clark e a Força Expedicionária Brasileira nos campos de combate da Itália.

Quantos segredos mais serão revelados um dia, quando toda a documentação que se encontra nos EUA sobre o golpe for aberta ao público?

Depois da quartelada vieram os Atos Institucionais. O AI-1 em 9 de abril de 1964, que garantia a presidência ao general Castelo Branco. O AI-5 em 13 de dezembro de 1968, que acabou com o hábeas corpus, censurou a imprensa e ampliou os poderes da Justiça Militar. Ademais, havia a Lei de Segurança Nacional. E os pseudojuristas subservientes de plantão. Foi o início do que se denomina “guerra suja”, a fase mais negra do regime militar.

Sobre o AI-5, escreveu Denise Assis, numa série de artigos publicados no Jornal do Brasil sobre os 40 anos do golpe: “Os verbos ir e vir perderam o sentido. Ou melhor, podia-se ir: para a cadeia, para a tortura, para a clandestinidade, para o exílio. Enquanto eles podiam vir: com novas medidas restritivas, acusações injustificadas, cassetetes e escudos para dissipar passeatas e manifestações e carros de chapa fria, que tinham o poder de embarcar no expresso 2222 e fazer desaparecer para sempre os que se opunham às suas idéias”.

Entre 31 de março de 1964 e 13 de dezembro de 1968, data do AI-5, o país viveu o período denominado de forma genial pelo jornalista Elio Gaspari de “ditadura envergonhada”.

Com o AI-12, de 31 de agosto de 1969, se instituiu a figura do banimento, pelo qual o executivo podia “banir do território nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional”. Era o Brasil do “ame-o ou deixe-o”.

A partir dessa época minha memória voa, e me vejo perfeitamente, de cata-vento verde amarelo nas mãos e com a farda do Colégio das Irmãs, desfilando na avenida Frei Serafim e catando que “esse é um país que vai pra frente”.

Mas se aquela época foi de alguma maneira feliz para aquela criança, para muitos outros brasileiros foi uma época dura, de sofrimento e dor física. A tortura ficará para sempre associada às Forças Armadas do período militar, superando em muito a violência do Estado Novo, vivamente registrada na obra de Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”.

Entretanto, muitos militares tiverem uma participação destacada em contra dos “excessos” do regime militar, dentre eles podemos citar o general Peri Constant Bevilaqua, que como Ministro do Superior Tribunal Militar, proferiu votos louváveis em defesa dos perseguidos pelo regime, como por exemplo nos autos do hábeas corpus impetrado em favor do então Professor Fernando Henrique Cardoso, acusado de utilizar-se da cátedra para “aliciar e deformar as mentalidades de grande número de estudantes: “Este processo contra professores universitários é uma vergonha para nossos foros de país civilizado; é uma ignomínia acusar, sem mais leve prova, de crime de alta traição um cidadão...”, afirmou Bevilaqua.

A única tentativa de volta a democracia veio através de Carlos Lacerda, da UDN, Juscelino Kubitschek, do PSD, e de João Goulart, do PTB, que se uniram na Frente Ampla – criada em 28 de outubro de 1966, e que durou até sua interdição pelo regime militar em 5 de abril de 1966. Brizola foi totalmente contrário a esse ultimo suspiro do regime constitucional de 1946. A frente Ampla acabou no MDB, a oposição consentida pelos militares.

Por fim, o período do considerado “milagre brasileiro” - que didaticamente podemos considerar o intervalo entre 1964 a 1980, intervalo em que a economia brasileira cresceu a 7,79% ao ano – pode ser sintetizado nas palavras do general Médici: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. O país investiu em obras, não em pessoas. De maneira que a falta de investimentos em educação, já diagnosticada em 1971 pelo economista Carlos Langoni em sua tese de Doutorado na Universidade de Chicago, tirou o fôlego do crescimento da economia brasileira.

Os anos passaram. Muita coisa mudou daquele Brasil de golpes e guerrilhas. O Presidente Jango somente voltou ao país morto, doze anos depois de seu exílio. Talvez, guardadas as devidas diferenças, o mais parecido aquele Brasil de 1964 seria hoje em dia a Venezuela, uma sociedade dividida entre uma legalidade autoritária, mas eleita e constitucional, e a revolta popular nas ruas.

Quanto a Antonio de Jesus ele voltou ao Liceu piauiense no dia seguinte, para seguir seus estudos do 2º ano Científico, porque naquele 1º de abril de 1964, as escolas funcionaram normalmente, a vida para milhões de brasileiros funcionou normalmente. Só ficou uma sensação de saudade misturada com medo de haver vivido em tempos tão esplendorosos.