quinta-feira, abril 01, 2004

Tempos esplendorosos

A gente estancou de repente
Ou foi o mundo então que cresceu
A gente quer ter voz ativa
No nosso destino mandar
Mas eis que chega a roda viva
E carrega o destino pra lá
Chico Buarque
“Roda Viva” – 1967

Antonio de Jesus acordou cedo naquele 31 de março de 1964, como fazia sempre desde que chegara a Teresina para estudar. No auge dos seus dezenove anos, cursava o 2º ano científico no Liceu piauiense. Somente a noite, ao chegar na praça do colégio, é que se deu conta que alguma coisa diferente havia quebrado a rotina daquele instante. O clima na praça era de rebelião. Muitos de seus colegas estudantes pobres como ele, que moravam em “repúblicas”, foram presos. O Exército dera um golpe no Presidente Jango. Naquela noite não houve aula, e ele voltou pra casa mais cedo.

Eram tempos esplendorosos, tempos em que ainda havia homens públicos preocupados com o Brasil, época em que se discutia verdadeiramente os problemas brasileiros, as opções ideológicas para deixar de uma vez por todas o subdesenvolvimento e avançar no caminho que levava em direção ao “paraíso” do primeiro mundo. Havia Luiz Carlos Prestes, que chegara a reunir-se com o todo poderoso Nikita Kruschev, mandatário da finada União Soviética. Havia a Guerra Fria.

Nas palavras de Fernando Gabeira, um protagonista daquele período, existe uma grande diferença pro nosso momento presente: “Eis uma das diferenças que podemos ressaltar entre aquele momento e o que vivemos hoje. Mesmo equivocadas, havia diferentes idéias na cabeça dos personagens. Ao passo que, hoje, quase todos terminam defendendo o estado liberal e, como não poderia deixar de ser, os seus carguinhos no governo”.

No outono de 1964, a história do Brasil deu uma guinada que somente voltaria a seu curso normal vinte anos mais tarde. O regime constitucional de 1946 estava com os dias contados.

Em setembro de 1961, quando Jânio Quadros renunciou, na tentativa de forçar seu retorno pela pressão da caserna que jamais aceitaria a posse de Jango, a aprovação do Parlamentarismo – genial obra de engenharia política do futuro Primeiro Ministro Tancredo Neves - salvou as aparências. Mas, a esmagadora aprovação da volta do presidencialismo, através do plebiscito de janeiro de 1963, reanimou a hostilidade à legalidade.

Jango, como era conhecido, havia sido Vice-presidente de Juscelino Kubitschek e de Jânio Quadros, através de candidaturas opostas, quando a legislação eleitoral permitia a eleição de Presidente e Vice separadamente. Filiado ao PTB getulista, tornara-se amigo de Getúlio durante seu exílio em São Borja.

O impasse estava servido. Apesar de amplos setores sociais estivessem de acordo sobre a necessidade de reformas, o congresso nacional estava dividido, e a falta de confiança e disposição para dialogar de ambas partes causou a paralisia. Faltou compromisso e instituições. Enquanto isso, o governo Goulart perdia o controle de uma crise gerada em parte por ele mesmo. De repente, o governo estava ilhado e a oposição apavorada. Os dois lados aguardavam um golpe, só não se sabia de que lado viria.

Então, na noite de 31 de março de 1964, o general Olímpio Mourão Filho, que mais tarde se qualificou de “Vaca Fardada”, sai de Juiz de Fora disposto a derrubar o Presidente, e consegue. Depois vieram cinco generais em vinte e um anos. O resto é história.

Por que os militares tinham tanta antipatia por aquele Presidente latifundiário gaúcho e boêmio afeito a coristas? Seria por causa do medo de que aquele latifundiário criasse uma “república sindicalista” ao estilo peronista? Seria por causa das famosas e vazias “reformas de base”? Sobre elas escreveu Augusto Nunes: “Vistas em retrospectiva, as reformas pregadas por Jango lembram o programa de um PFL. Incluíam a extensão do direito de voto aos analfabetos, a desapropriação de faixas de terra à margem das rodovias, a nacionalização das refinarias e outras mudanças hoje nada assustadoras. Na época, era coisa de comunista”.

Para Jarbas Passarinho, que mandou às favas os escrúpulos de consciência na assinatura do AI-5, 13 de dezembro de 1968 foi “um golpe de Estado que preveniu um autogolpe em marcha acelerada”. Para ele, o golpe foi produto do medo.

Hoje já sabemos que os militares não estavam sozinhos, pois contaram com apoio político e popular. A grande imprensa apoiou as forças golpistas, à medida que a crise se agravava, desde o segundo semestre de 1963 e de maneira destaca no principio de 1964.

A campanha de desestabilização do governo Goulart contou ainda com as “carolas de rosário”, patrocinadas pelo Instituto de Pesquisas e Estudos Sociais – IPES e o Instituto Brasileiro de Ação Democrática – IBAD, através do movimento de mulheres organizadas como a Campanha da Mulher pela Democracia – CAMDE, a Liga da Mulher Democrata – LIMDE e a União Cívica Feminina – UCF. Elas foram a base para as famosas “Marchas da família, com Deus, pela liberdade”, que reuniram milhares de pessoas e que suas imagens justificaram durante anos o regime militar.

Sem contar com o decisivo apoio da frota naval estadunidense, que ficou na costa, pronta pra prestar socorro aos golpistas caso se iniciasse uma guerra civil. Os EUA acompanhavam muito de perto a conspiração através da rede “Operação Brother Sam”. O jornalista político Carlos Chagas explica que essa ligação dos setores golpistas militares brasileiros com os EUA começou do contato mantido na II Guerra Mundial, tendo o coronel Vernon Walters, adido militar da embaixada americana no Brasil em 1964, o principal elemento de ligação, desde que atuou como elemento de ligação entre o comando do Exército do general Mark Clark e a Força Expedicionária Brasileira nos campos de combate da Itália.

Quantos segredos mais serão revelados um dia, quando toda a documentação que se encontra nos EUA sobre o golpe for aberta ao público?

Depois da quartelada vieram os Atos Institucionais. O AI-1 em 9 de abril de 1964, que garantia a presidência ao general Castelo Branco. O AI-5 em 13 de dezembro de 1968, que acabou com o hábeas corpus, censurou a imprensa e ampliou os poderes da Justiça Militar. Ademais, havia a Lei de Segurança Nacional. E os pseudojuristas subservientes de plantão. Foi o início do que se denomina “guerra suja”, a fase mais negra do regime militar.

Sobre o AI-5, escreveu Denise Assis, numa série de artigos publicados no Jornal do Brasil sobre os 40 anos do golpe: “Os verbos ir e vir perderam o sentido. Ou melhor, podia-se ir: para a cadeia, para a tortura, para a clandestinidade, para o exílio. Enquanto eles podiam vir: com novas medidas restritivas, acusações injustificadas, cassetetes e escudos para dissipar passeatas e manifestações e carros de chapa fria, que tinham o poder de embarcar no expresso 2222 e fazer desaparecer para sempre os que se opunham às suas idéias”.

Entre 31 de março de 1964 e 13 de dezembro de 1968, data do AI-5, o país viveu o período denominado de forma genial pelo jornalista Elio Gaspari de “ditadura envergonhada”.

Com o AI-12, de 31 de agosto de 1969, se instituiu a figura do banimento, pelo qual o executivo podia “banir do território nacional o brasileiro que, comprovadamente, se tornar inconveniente, nocivo ou perigoso à segurança nacional”. Era o Brasil do “ame-o ou deixe-o”.

A partir dessa época minha memória voa, e me vejo perfeitamente, de cata-vento verde amarelo nas mãos e com a farda do Colégio das Irmãs, desfilando na avenida Frei Serafim e catando que “esse é um país que vai pra frente”.

Mas se aquela época foi de alguma maneira feliz para aquela criança, para muitos outros brasileiros foi uma época dura, de sofrimento e dor física. A tortura ficará para sempre associada às Forças Armadas do período militar, superando em muito a violência do Estado Novo, vivamente registrada na obra de Graciliano Ramos, “Memórias do Cárcere”.

Entretanto, muitos militares tiverem uma participação destacada em contra dos “excessos” do regime militar, dentre eles podemos citar o general Peri Constant Bevilaqua, que como Ministro do Superior Tribunal Militar, proferiu votos louváveis em defesa dos perseguidos pelo regime, como por exemplo nos autos do hábeas corpus impetrado em favor do então Professor Fernando Henrique Cardoso, acusado de utilizar-se da cátedra para “aliciar e deformar as mentalidades de grande número de estudantes: “Este processo contra professores universitários é uma vergonha para nossos foros de país civilizado; é uma ignomínia acusar, sem mais leve prova, de crime de alta traição um cidadão...”, afirmou Bevilaqua.

A única tentativa de volta a democracia veio através de Carlos Lacerda, da UDN, Juscelino Kubitschek, do PSD, e de João Goulart, do PTB, que se uniram na Frente Ampla – criada em 28 de outubro de 1966, e que durou até sua interdição pelo regime militar em 5 de abril de 1966. Brizola foi totalmente contrário a esse ultimo suspiro do regime constitucional de 1946. A frente Ampla acabou no MDB, a oposição consentida pelos militares.

Por fim, o período do considerado “milagre brasileiro” - que didaticamente podemos considerar o intervalo entre 1964 a 1980, intervalo em que a economia brasileira cresceu a 7,79% ao ano – pode ser sintetizado nas palavras do general Médici: “A economia vai bem, mas o povo vai mal”. O país investiu em obras, não em pessoas. De maneira que a falta de investimentos em educação, já diagnosticada em 1971 pelo economista Carlos Langoni em sua tese de Doutorado na Universidade de Chicago, tirou o fôlego do crescimento da economia brasileira.

Os anos passaram. Muita coisa mudou daquele Brasil de golpes e guerrilhas. O Presidente Jango somente voltou ao país morto, doze anos depois de seu exílio. Talvez, guardadas as devidas diferenças, o mais parecido aquele Brasil de 1964 seria hoje em dia a Venezuela, uma sociedade dividida entre uma legalidade autoritária, mas eleita e constitucional, e a revolta popular nas ruas.

Quanto a Antonio de Jesus ele voltou ao Liceu piauiense no dia seguinte, para seguir seus estudos do 2º ano Científico, porque naquele 1º de abril de 1964, as escolas funcionaram normalmente, a vida para milhões de brasileiros funcionou normalmente. Só ficou uma sensação de saudade misturada com medo de haver vivido em tempos tão esplendorosos.