segunda-feira, abril 18, 2005

Que diabos será a vida?



Eu não devia te dizer
mas essa lua
mas esse conhaque
botam a gente comovido como o diabo.

Carlos Drumond de Andrade,
em “Poema de sete faces”.

Rapazes, não confundam a calma
destas linhas preparatórias
com a melancolia comum.
Não tem melancolia aqui.
Sou feliz. Estou convencido que
cumpro o destino que deviam ter
meu corpo em sua transformação,
minha alma em sua finalidade.
E passo bem, muito obrigado.

Mário de Andrade,
em Advertência,
no livro “O losango Cáqui”, 1922.


Como toda segunda-feira, saltei da cama feliz da vida de não acordar e dá de cara com outro domingo. Não que eu tenha algo pessoal contra o domingo, longe disso. Eu acredito firmemente que é ele, o domingo, que não vai muito com minha cara. Saí correndo a comprar um envelope para mandar um presentinho para uma amiga que completa mais uma primavera nesta quinta e não vive mais nesta cidade. Peguei uma pequena fila para pagar a conta de telefone e estava indo pro supermercado mais perto de casa quando vi a aglomeração e o carro da policia.

O normal, como nos ensinaram nossas mães, é passar sem sequer olhar pro quê está acontecendo, mas como ninguém segue mesmo a risca o que diz a mamãe, parei. Havia um papel alumínio cobrindo um banco do passeio da avenida e pelo volume, era claro que havia um corpo ali.

Não foi necessário perguntar a ninguém o que ocorria, porque os seis senhores com pinta de aposentados da calçada já comentavam tudo. Alguém morreu no banco do passeio enquanto tomava o sol da manhã. Havia dúvidas sobre a identidade do falecido, mas todos eram unânimes em afirmar que era um senhor de idade, que sempre ocupava aquele banco do passeio pela manhã.

As caras deles comentando o ocorrido, me fizeram pensar no que estariam pensando no fundo de suas almas, muito embora o que saía de suas bocas era muito diferente. E os olhares, tão amedrontados que fariam uma criança chorar. Sem querer, formavam um grupo de velhos aposentados na calçada a olhar um corpo, rodeado de policiais fardados que esperavam o carro fúnebre.

Bem, a verdade é que continuei meu caminho e entrei no supermercado. Mas meu pensamento foi atingido pela idéia da debilidade da existência, essa coisa que não podemos explicar e que somente em situações como essa, nos obriga a ver que a vida é ... nada. Algo tão frágil, tão sem sentido, tão absurdo, e nós criamos tantas ilusões e sonhos, tantas ambições ridículas que chega a dar pena.

A luta pela existência, a dor de viver que habita cada homem sobre a face da terra, o amor perdido, a espera por aumento de salário, tudo parece tão absurdamente ridículo em comparação com um corpo tombado num banco de praça, rodeado de gente estranha e funcionários insensíveis à rotina de seus deveres. E, ao mesmo tempo, a vida é uma seqüência de fatos alegres e tristes que se entrelaçam no caminho de qualquer um, tanto fazendo se você mantém as rédeas da sua vida ou se já desistiu há muito tempo e apenas se deixa levar pelos acontecimentos.

A religião, a filosofia, os livros de autoajuda, nada consegue dar uma resposta a esta pergunta que às vezes aflige a mente humana depois de haver conseguido pagar as contas do mês. E ali estavam os velhos aposentados, boquiabertos com suas bengalas e gorritos, protegidos do vento primaveril que apesar de fraquinho, corta a cara e avermelha as orelhas.

A vida é o supremo mistério da ciência, com o sem o mapa do genoma humano. De que vale clonar um ser humano se não sabemos o porquê de sua existência? A ciência, assim como as ideologias, são feitas por pessoas que, por maior boa vontade que tenham, estão mais preocupadas com pequenas coisas que na verdade, pouco valem.

Os velhos continuavam ali, e imagino seus medos, o difícil que será tomar o sol amanhã no mesmo passeio, sabendo que naquele banco sentando tantas vezes, estava tombado um senhor que como eles, poderia ter feito as mesmas coisas de sempre. Os jogadores de damas da esquina até suspenderam o jogo e olhavam em silêncio os carros da policia chegando. Mas ninguém se aproximava, ninguém se arriscava a falar com o oficial que buscava informações sobre o morto.

Saio do supermercado e passo por eles, cruzo a avenida em silêncio e chego em casa me lembrando das quarenta folhas que devo apresentar ao meu orientador nesta semana, pois ao final, devo produzir e terminar a bendita tese. Mas, Deus saberá, como esta cena ficará gravada em minha memória, com todo o mistério que existe.

* Escrito na cidade de Valencia, Espanha, em 11 de março de 2001.