terça-feira, maio 17, 2005

Espanha


Que és España?
– España es nuestra amada Patria:
El conjunto de pueblos españoles
que existen y han existido.

Don Edelvives,

na Enciclopédia Escolar
Primer Grado, p. 112,

Barcelona, 1934.



Às vezes, no meio de minha tarde, meu coração se enche de Espanha. E quando digo que “meu coração se enche de Espanha” não me refiro a Espanha geográfica, porque a Espanha que carrego no peito é maior e mais pessoal. É uma sensação de saudade misturada a sabores, cheiros e tantos sentimentos que me deixam imobilizado. É um jornal, uma tarde, uma conversa numa calçada bebendo café que nunca deveria ter acabado. É andar pela avenida Blasco Ibañez durante uma chuva pela noite solitária. São minhas noites insones durante o verão de 2001 ao pé da janela daquele apartamento na Plaza de Honduras, ouvindo a Radio 3, preocupado em como terminar a tese de doutorado.

Minha Espanha está cheia de pessoas, todas que passaram pela minha vida e que continuam existindo em algum lugar da minha memória. E são estes sentimentos misturados que carrego comigo, nessa adolescência que nunca tem fim, que muitas vezes me invade e me paralisa, me adoece.

Sonho sempre com a mesma cena, de jaqueta de couro marrom, me despendido de ti, num terrível e último adeus, e saindo do meu apartamento na calle Concha Espina em direção à avenida Blasco Ibañez, certamente em direção algum bar, com frio, as lágrimas caindo pelo meu rosto, com toda a dor da separação em meu peito, seguindo para qualquer lugar, triste noite de saudade e de começo de esquecimento forçado. Como naquele domingo sem ti, que eu chorei na casa do Juan Carlos, e ele foi tão amigo que fez de conta que não me via chorando.

Por que às vezes é tão difícil esquecer? Por que tantas vezes sigo pela vida carregando tantos sentimentos, se na verdade sei que desta forma a caminhada será ainda mais dura?

E me vejo sentado no Café das Letras, encostado na primeira coluna de frente ao balcão, bebendo um cubata e escrevendo minhas dores que ninguém nunca lerá. Ou conversando com Rafa no Café Manon, escutando o “torico enamorado de la luna” em noites de tão feliz amizade que até Deus quis aproximar-se da nossa mesa.

Espanha se esparrama sobre minha saudade, sobre minhas melhores lembranças. Espanha também é cidade, é Valencia iluminada na “nit del foc” de 2003, quando juntos olhávamos o céu na ponte de Calatrava e eu segurava o turbilhão de lágrimas que se preparava pra saltar pelos meus olhos, sabendo que dentro de nada teria que partir. As “paellas” que me preparou Juan Perez Locilla, as estórias que me contou Enrique Lloris e todos os “canadians” que me serviu Pepe Txontas do “Asesino”. Quantas noites andei pelo bairro de Carmen em alegre companhia e em triste agonia. Durante anos tive o mesmo sonho, vagando pela calle Colón vazia em busca de algo que nunca encontrarei.

Espanha é meu medo e minha certeza. É pra onde seguirá minha alma quando chegue minha derradeira hora. Velho império colonial castelhano, nação de nações, baluarte da cristandade, último sopro de história no seio de um passado mítico que percorre toda América Latina, Espanha de mouros e cristãos, Espanha envelhecida por tanta culpa de pecados esquecidos, Espanha começo e fim, Espanha tens nome e aroma de mulher. Espanha, por que tua lembrança me doi tanto?

O mercadilho dos ciganos nas manhãs de domingo no estacionamento do Mestalla, com milhões de vozes de distintos sotaques, a alegria de encontrar a Rafa e Antonia em Sal y Pimenta,

Espanha, plaza do Cedro, entre bares e “porros”, de noites de pura magia, no meio do mundo, de amigos de diversos países, ávidos por emoções. Espanha do Cabañal, do peruano Carlos Taboada e seus sonhos libertários.

Espanha dos covardes, dos heróis, das pessoas comuns que não conseguem chegar ao fim do mês, dos malandros sempre buscando um otário, Espanha da cara séria, do sorriso largo, das ruas cheias de caca de cachorro, dos cupões da ONCE. Espanha do pão, da bocata, do aceite de oliva, do vinho e do jamon serrano.

Há dias que Espanha invade minha saudade. Abro um Rioja crianza e desfruto cada segundo dessa saudade. Vou lutar pra que?

* Escrito em setembro de 2004.