sábado, junho 21, 2008

Se lessem bem a Bíblia, deixariam de crer

ENTREVISTA Piergiorgio Odifreddi

“Se lessem bem a Bíblia, deixariam de crer”

JESUS RUIZ MANTILLA – El País - 15/06/2008
Tradução de Antonio de Freitas

É o açoite da Igreja na Itália. Seu vicio: desmontar dogmas. Piergiorgio Odifreddi vendeu 200.000 exemplares de ‘Porque não podemos ser cristãos’.

Mesmo sendo um ateu confesso, ainda tem calos nos pés por culpa de sua última experiência mística. Piergiorgio Odifreddi (Cuneo, Italia, 1950) acaba de regressar do Caminho de Santiago, essa meca da cristandade que percorreu durante duas semanas com seu amigo Sergio Valzania. O itinerário deu o que falar na Itália. Juntos fizeram em cada etapa um programa especial para a emissora RAI 3. A graça está em que Odifreddi não crer, mas Valzania sim se confessa católico fervoroso. “Ao final ficamos como começamos. Nem ele me convenceu, nem eu consegui quebrar sua fé”, comenta, num hotel do centro de Madri, este escritor, matemático e professor de lógica.

Porém em algo sim se puseram de acordo: “Galicia é belíssima; Castela, um pouco chata com essas planícies intermináveis”, comenta. “E Espanha, mais laica que Itália, com diferença. “Em nosso país ainda não é possível criticar abertamente à Igreja”, assegura Odifreddi. Talvez por isso, para parar a ‘larga mano’ do Vaticano sobre a liberdade de expressão, este ensaísta se lançou na jugular da Igreja. O fez com um livro que resultou um impacto em seu país e um sucesso de vendas que deixou patente algo serio: “A fratura entre religião e laicismo que existe em meu país, com clara desvantagem para os não crentes”.

O título é tão direto que não deixa lugar a dúvidas: “Porque não podemos ser cristãos e menos ainda católicos” (RBA). Nem precisa dizer que o texto de quem é hoje em dia o açoite do laicismo na Itália supõe-se um pesadelo entre as hierarquias. Não por existir, senão porque o destino e os calendários editoriais o lançaram nas livrarias para competir no mesmo instante com um livro oposto: “Jesus de Nazaré”, do Papa Joseph Ratzinger.

“Durante semanas estivemos nos alternando no primeiro e no segundo lugar das listas dos mais vendidos”, comenta jocoso Odifreddi. Seguramente a cúria haveria preferido outro competidor. Porém ao diabo não se põe nada por adiante. Segue jogando forte e fazendo das suas. Nem com rosários puderam evitar que Odifreddi vendesse 200.000 exemplares.

De maneira que chegas do Caminho de Santiago… Nem assim encontraste a luz?
Foi uma experiência interessante. Acho que é a primeira vez que um ateu retransmite para a Itália o Caminho pela radio. O modelo foi o filme de Buñuel La Vía Láctea, com aqueles dois personagens que combatiam a golpe de dogmas e heresias.

Bem, igual que sempre, não?
Ainda que a heresia como conceito foi superada por uma etiqueta muito mais digna que chamamos laicismo. Na Espanha tem mais sorte que na Itália neste âmbito.

Você acha?
Na Espanha não existe um cardeal Martini, por exemplo. Alguém que defenda tão abertamente desde a hierarquia o sacerdócio para as mulheres ou as bodas entre curas. Homem, na Espanha a direita é católica, porém a esquerda é claramente laica. Na Itália eu militei no Partido Democrático, de Walter Veltroni, e me retirei porque não defendiam o laicismo. Ele mesmo me pediu. Eu pensei que era conveniente porque já que dentro convivem várias correntes, alguns podiam alentar um ar de esquerda mais radical e laico para barrar o que nós chamamos facção ‘teocon’. Porém, ao final Veltroni não foi claro. Decidiu não se meter em assuntos que tiveram que ver com a Igreja. Por mais que lhe perguntassem, nada. E eu me fui do partido ao ver que não se comprometia claramente.

Por que a esquerda italiana não se decide a romper com a Igreja?
As eleições anteriores foram ganhas pela esquerda com 20.000 votos. Com essa vantagem tão pequena, ninguém quer contrariar a uma organização que controla a 30 milhões de cidadãos. eu militei para tentar, mas é difícil num partido que lidera alguém como Veltroni, uma personagem a quem lhe conhecem como o senhor mas também… Falta coragem. Esta oportunidade nós a perdemos.

Desde a esquerda, depois das primeiras ações de Berlusconi, como se vai digerindo o resultado eleitoral?
Por culpa de coisas como estas a esquerda perdeu. O partido de Veltroni não tem identidade, é uma refundação de velhas estruturas. Cabe gente do antigo Partido Comunista e da Democracia Cristiana, empresários e trabalhadores…há 120 deputados que se declaram abertamente católicos. Até a antiga Democracia Cristiana era melhor que isto! Com relação a este Governo, é direita pura.

Muitos o qualificam de neofascista.
Tire-lhe o ‘neo’. Fini é fascista. A Liga é racista e Berlusconi segue com o seu. Na primeira semana de mandato já discutíamos da televisão… Porém, no fim, este Governo sabemos o que é. Sem embargo, com o partido de Veltroni não há definições claras.

Resulta-lhe ‘light’, descafeinado?
Tem medo a certas coisas. Da Igreja, para começar. Na Espanha não acontece isto. Eu leio artigos na imprensa deste país que na Itália seriam impensáveis. Custa publicar certos assuntos.

Por isso decidiu deixar suas posições claras no livro?
Com a óptica de um matemático, ademais. Escrevi muita divulgação científica. Com assuntos que relacionam ciência e religião, como fiz em ‘O Evangelho segundo a ciência’, por exemplo, ou em ‘As mentiras de Ulisses’. Empenhei-me em fazer ver as matemáticas como uma parte da cultura, integrar ambos os mundos.

Porém, como formula um matemático algo que carece de toda lógica?
Este livro tem duas inspirações claras. A obra de Bertrand Russell ‘Por que não sou cristão?’ e aquela de Benedetto Croce ‘Por que não podemos considerar-nos cristãos’. A idéia nasceu porque cada ano editamos um livro de Russell e era a vez de fazer aquele. O reli e me pareceu que havia envelhecido mal com o tempo. Disse ao editor e ele me propôs fazer uma interpretação própria. Assim que me meti um semestre em Nova York, no Instituto de Estudos Italianos da Universidade de Columbia. Estudei a fundo a Bíblia e o catecismo. Meus amigos me encontravam sempre com ambos livros nas costas e me perguntavam: “O que te passa?”.

Normal…lhe veriam como um converso ou temiam alguma salva de tiros sua. Quem sabe! O caso era fazer uma leitura a fundo, uma crítica da religião, não desde perspectivas políticas de ingerência na vida pública e tudo isso, senão de observar-lo desde uma concepção teológica, desde dentro, e descobrir seus anacronismos. Sua concepção violenta, cruel, sanguinária da vida, sobretudo no Antigo Testamento. Por isso, ofenderam-se também os judeus, que me acusaram de anti-semita.

É que reparte para todos.
Normal. Os cristãos herdaram o Antigo Testamento e ninguém sane porque o fizeram.

O acusaram ademais de maneira acrítica.
Completamente. Houve alguns que quiseram eliminá-lo. Acreditavam que o Deus bom do Novo Testamento não requeria a ira do anterior. Não se aceitou.

Ameaçaram-lhe?
Alguns me escreveram dizendo que desse graças porque os cristãos não foram como os islamitas, que se não já o haveria pago. Pensei em fazer algo que se intitulasse ‘Porque não podemos ser islâmicos’, porém é que em Itália são quatro e não seria útil. Ademais decretariam uma ‘fatwa’, e é o que me faltava.

Todavia há coisas que não nos deixam tocar.
E tanto, na Itália existem diretores de jornais que reconhecem que os dogmas de fé são um conto, porém que não podem escrever porque o mero fato de pô-lo em dúvida já cria um conflito.

Como por exemplo…
O pior é pôr em dúvida a própria existência de Jesus Cristo. Não há constâncias históricas serias. São relatos construídos a posteriori. Dizer isto já é algo escandaloso.

Igual que pôr em dúvida a virgindade de Maria, que não se sabe muito bem é por que se sustenta o contrario.
Aquela invenção! Incrível! É um dogma com uma historia muito interessante, de todas as formas. Para isso, se readaptou uma passagem do Antigo Testamento que diz: “Por aqui passou Deus (referindo-se ao útero da Virgem) e não o fará ninguém mais”. São as mesmas palavras que utilizam para assinalar uma porta de Jerusalém pela que passou a Arca da Aliança. Pegam uma passagem, se muda de lugar e a ninguém lhe importa.

A você, depois de haver escrito que Cristo pode ser filho ilegítimo de um centurião romano, não lhe queimaram?
Pantera se chamava o homem. Porém tudo isso já se comentava na época mais próxima. Enfim, eu não creio que haja muita gente que engula a estas alturas. Creio que é uma pose social sustentar estas coisas, porém que na verdade não o pensam. É uma convenção. Nem isto, nem a trindade, nem a transubstanciação... Nem a ressurreição se pode explicar cientificamente. No é um milagre. As bactérias do tétano, por exemplo, podem produzir uma morte aparente. Ele pode ter pegue cravado na cruz.

Existem explicações racionais para tudo aquilo que passa no Evangelho, porém não há para tudo o que dizem nele.
Certo, certo. O Evangelho tem três inspirações. Uma: a do profeta, a de Jesus da montanha, a dos bem-aventurados. Logo está a do charlatão. Na Palestina, há 2000 anos, havia muitíssimos. A última é a do Jesus revolucionário. Unindo as três, se forjou esta historia.

Uma historia que tem depois da sua própria história.
Essa é a mais interessante. Apaixonante. Entender quais são as fontes desses escritos, separa-los, encurtá-los. Aos apócrifos, tratá-los desde o ponto de vista lingüístico, da arqueologia da linguagem, os passos que sofreram depois dos diferentes concílios, tudo isso. As discussões, as heresias que pintavam a Jesus como uma realidade virtual, como o personagem de um filme, como um ser que nunca existiu porque nunca havia podido encarnar-se por ser Deus precisamente. Assim até nossos dias, porque o último dogma é de 1950, a assunção da Virgem, que também trouxe o seu.

Ah sim?
Sim, porque os católicos pensavam que havia ascendido sem saber se havia morrido ou não. Enquanto que os ortodoxos sustentavam que seguramente havia morrido, mas não estão certos de que haja ascendido. Não é uma brincadeira? Eu inclusive cheguei a fazer um cálculo científico. De onde ascendeu? Verticalmente desde Jerusalém. Com quê? Com o corpo. Supondo que haja feito à velocidade da luz, leva 2.000 anos subindo e, portanto, todavia não atravessou nossa galáxia. Por aí segue, está saindo. Com qualquer telescópio potente em Jerusalém mesmo poderíamos localizar-lo. Se da conta do ridículo?

Em suas desmontagens você trata também os mandamentos.
Os hebreus sustentam que há mais de 600, porém no caso cristão, um dos mais interessantes é o segundo, que se perde, curiosamente. O que proíbe levantar e construir imagens.

Qual de todos os dogmas é o que mais lhe atrai?
A transubstanciação. A hóstia, que se baseia num principio aristotélico. Vai contra a idéia de substancia científica. Aos papas lhes trai de cabeça.

De onde lhe vem essa mania de pôr tudo de perna pra cima?
Não faz falta tanto. Se quisesse fazer uma verdadeira cruzada, recomendaria uma única coisa ás pessoas: que lessem a Bíblia com um ponto de vista racional, com atenção. Deixariam de crer imediatamente. Não fazem falta livros anticlericais.

É que 200 anos de Ilustração prendem finalmente em nossa moral e em nossa concepção das coisas de maneira contundente.
É assim. Pese a que muitos insistem em que não pode haver moral sem religião. Era Chesterton quem dizia que se não acreditavas em Deus, podias crer em qualquer coisa. Eu agora penso o contrário, que quem acredita em Deus pode acabar tragando qualquer coisa. A Itália é um dos países com mais fé do mundo, por isso seis milhões de italianos consultam também a magos, quiromânticos, leitores de cartas. Se você acredita na trindade ou na virgindade, acredita em qualquer coisa. Tampouco é justo esse discurso de que os laicos não acreditam em nada. Não é certo, o fazemos nos ideais. Porém não nos dogmas.

Isso que tanto espanta agora do relativismo, como o vê?
Ahh… Ratzinger é um ultraconservador antipático e obtuso. Estas coisas o provam. É um assunto que demonstra a incapacidade da Igreja para entender casos como o de Galileo. Lhe perdoaram 400 anos depois de haver condenado por algo que era certo, porém não entenderam nada. O admitem muitos membros da Igreja, ainda que logo o pagam. O disse George Coyne, um jesuíta que foi o encarregado do Observatório Astronômico do Vaticano durante 25 anos. Assegurava que não havia compreendido a magnitude desse caso. E que passou com ele? Que o licenciaram. Este mesmo pediu publicamente ao Papa que definisse suas posições sobre o evolucionismo e lhe cessaram.

Os jesuítas são outra coisa?
São os mais incisivos, sem dúvida. Cogitam abertamente suas dúvidas sobre muitos dogmas. Existe uma anedota fantástica que os define. Quando descobriram a múmia de Jesus em Jerusalém, os franciscanos diziam: é certo o que sofreu por nós, as feridas estão à vista, devemos amá-lo ainda mais. Os dominicanos cogitaram: cuidado, que se está aqui é que não ressuscitou, teremos problemas com o dogma. E os jesuítas deduziram: aí o temos; portanto, existiu. Não é genial?

Martini é um bom exemplo de jesuíta.
Bom, é que ele chegou a criticar até o livro do Papa sobre Jesus de Nazaré. É raro, porém é a minoria.

É necessário escrever livros assim contra a Igreja ou é dar-lhe demasiada importância a tudo aquilo que não deveria nem sequer ser debatido porque vai contra toda razão?
Não só é necessário. É que me parece pouco tudo o que se pode argumentar contra. Tratei de escrever um livro sério, sem desprezar também a ironia. Ainda que sobretudo tentasse fazer uma crítica rigorosa baseada em princípios teológicos e a prova de que calei é que lhes incomodou. A importância da Igreja é um fato, não é que dei eu. Não escreveria um livro perguntando-me por que não somos ‘raelianos’. Importa-me exatamente o mesmo. Na Itália, 30 milhões de pessoas se declaram católicos. A Igreja possui um quarto dos bens imóveis, de nossos edifícios.

Como imobiliária não há quem possa com ela.
Exato. Ademais, na Itália, o Papa vive dentro. Uma solução seria enviá-lo a Jerusalém. Deixemos Roma para os romanos.

Na Espanha vive o ‘Opus’, que também impõe.
Uma organização que ganhou muitíssimo poder dentro da Igreja por culpa de João Paulo II, por certo. Ele levou à bancarrota as finanças vaticanas para financiar o sindicato Solidariedade. Foi o Opus quem tapou o buraco.

Outro dos assuntos que trata no livro é o criacionismo.
Não acreditemos que seja apenas um invento dos EUA, ainda que foi ali onde se desenvolveu mais. Na Itália, já o primeiro Governo de Berlusconi o reivindicou, e não me estranharia que agora voltassem a carga. Faz-me graça que agora, para fazer o Caminho, meu companheiro levou a Bíblia. Eu, ao contrário, elegi ‘A origem das espécies’, de Darwin. Impressionou-me sua visão de futuro. Todas as objeções cretinas que lhe põe hoje ao evolucionismo, Darwin as previram e ademais as responde no livro com antecipação.

O viu chegar?
Exato, e basta ler-lo para frear-lhes. Porém o problema é que são insaciáveis. Porque tampouco o evolucionismo vai contra a religião. O problema está não tanto na criação do mundo, senão no momento que surge o homem. Aí tinham que por seu selo.

Inventar a culpa. Sem culpa não há negocio? Isso é.

E por que dentre todo o cristianismo, o que menos se sustenta para você é o catolicismo?
Porque são os que mais dogmas impõem e, portanto, os mais fáceis de rebater.

Mas quando a maioria são imposições caprichosas, a expensas dos papas, os concílios, as alianças de poder.
Como a infalibilidade pontifícia, o dogma que mais suspeita desperta entre os crentes. Pesquisas de universidades católicas asseguram que na infalibilidade do papa só acredita 30% de católicos. É o dogma mais débil. Há outras coisas mais absurdas, como que 40% dos que tem fé acreditam que São João se converteu em filho da Virgem diante da cruz. O que lhe digo: se lessem com atenção os evangelhos, deixariam de acreditar automaticamente.