quinta-feira, fevereiro 12, 2009

O cemitério onde Borges queria descansar


O cemitério onde Borges queria descansar

Testemunhos contraditórios reavivam a polêmica sobre a tumba do escritor

DANIEL SALGADO - Santiago – El País - 12/02/2009

Tradução de Antonio de Freitas Jr.

A imagem se move em preto e branco. O homem que fala chama-se Jorge Luis Borges e o faz em frente ao panteão de sua família, no cemitério buenairense de “La Recoleta”. Corre o ano de 1969. O autor de “El Aleph” explica à câmara sua vontade de ser enterrado junto aos seus, a uns metros de Evita Perón e no mesmo recinto que os "Pais da Pátria", no campo santo mais central de Buenos Aires. A película, um documentário realizado para a televisão pública francesa pelo franco-espanhol José María Berzosa e por André Camp, se intitula “Le passé qui ne menace pas” [O passado que não ameaça] e encontra-se depositada nos arquivos do Instituto Nacional de Audiovisual da França. A sequência, inserida em duas horas de metragem da peça “Borges”, cobrou relevância no meio da disputa gerada pela intenção do governo argentino de repatriar os restos do escritor, enterrados desde 1986 em Genebra, na Suíça.

"Aguardo a morte com esperança (...) tenho medo de ser imortal". Assim falava Borges, em 1978, a dois jornalistas galegos, Ignacio Ramonet e Ramón Chao, no L'Hôtel, o mesmo estabelecimento de Paris em que havia falecido Oscar Wilde 78 anos antes. Foi precisamente Ramón Chao, escritor e pai do cantor Manu Chao, quem resgatou o filme de Berzosa e Camp do esquecimento. "Trata-se de um documento muito importante", explica, "que demonstra que o escritor queria que o enterrassem em Buenos Aires".

Não é a única menção testamentária de Borges. Um de seus biógrafos, Alejandro Váccaro, citava no diário argentino “La Nación”, a “Antología personal” do poeta e contista, publicada em 1961. "Não passo diante de “La Recoleta” sem recordar que estão sepultados ali meu pai, meus avós e tataravós, como eu o estarei", escreveu então. Váccaro advoga por dar razão ao grupo parlamentar oficial, apoiado pelo Executivo de Cristina Fernández de Kirchner, que apresentou um projeto de lei através da deputada María Beatriz Lenz para repatriar o cadáver de Borges da Suíça em agosto.

Porém, as ânsias de Jorge Luis Borges (1899 – 1986) e do nacionalismo argentino chocam-se com a última esposa do escritor. María Kodama, diante dos microfones de uma cadeia de rádio portenha, afirmou que "em democracia, nenhuma pessoa de nenhum partido pode dispor, ou tentar dispor do corpo de uma pessoa, que é o mais sagrado, ante a outra que deu e segue dando sua vida por amor". Kodama, em declarações ao jornal espanhol “El País”, enquadra essas opiniões de Borges "nos anos 60". "Borges foi viver na Suíça e quis ser cidadão suíço", afirma, "recentemente transmitiram uma entrevista posterior onde fala em sentido contrario ao que diz Váccaro".

A viúva expõe que ela mesma "é a única que pode decidir sobre Borges. O poder simbólico é o da obra, não o do corpo de Borges". Não oculta seu ressentimento com um Alejandro Váccaro "que não está à altura ética nem intelectual de Borges, e que somente busca montar escândalo nos jornais", a quem acusa de alentar a iniciativa da deputada Lenz. "Quem é o senhor Váccaro ou o resto do mundo para dizer o que hei de fazer com Borges?", se questiona, antes de recordar uma sentença que, a meados dos 90, deu-lhe razão numa polêmica similar. Casada com Borges meses antes da morte do escritor, María Kodama não deixou de participar de atos em memória da obra de seu marido morto.

Para Ramón Chao, sem embargo, o assunto não oferece demasiadas dúvidas. “Borges é argentino e sua obra é argentina; ademais, no filme de Berzosa fica claro”. O jornalista galego relata que foi a própria María Kodama, secretaria pessoal de Borges desde 1975, quem lhe facilitou "a entrada" para acercar-se ao autor de “Fervor de Buenos” Aires. A tradição familiar suicida ou a ideia da "morte cíclica", latente em numerosos textos borgianos, surgiram então naquelas conversas. "O importante", diz, "está em “Le passé qui ne mence pás”, com Borges entrando e saindo do panteão onde queria descansar quando morresse".