Na feira
ANTONIO MUÑOZ MOLINA – Babelia - El País - 22/05/2010
Tradução de Antonio de Freitas
ANTONIO MUÑOZ MOLINA – Babelia - El País - 22/05/2010
Tradução de Antonio de Freitas
Não sei como encontrei pela primeira vez o caminho até o ‘Retiro’ e à Feira do Livro de Madri. Era 1970. Como fui à escola no tempo anterior à pedagogia, tenho boa memória para as datas e, portanto posso situar com precisão as lembranças. Era a primeira vez que viajava a Madri, a primeira vez que subia num trem, que pisava o território fantasma das estações à meia noite, com seus relógios iluminados e suas luzes vermelhas sinalizando a fronteira da escuridão ao final dos hangares. Viajava com meus avós maternos, que tinham planejado visitar a Feira do Campo, ‘El Escorial’ e o ‘Valle de los Caídos’, de passear pelo ‘Retiro’, pôr uma vela no ‘Cristo de Medinaceli’ e tomar uma cerveja com camarão numa taverna, ao parecer lendária, que se chamava ‘El Abuelo’. Na taverna do ‘Abuelo’, diziam com admiração as pessoas de minha província quando voltavam de Madri, se consumia tantos camarões que os pés afundavam entre as cascas quebradiças e tinha que se fazer um esforço heróico para passar entre os joviais bebedores de cerveja. Em tudo que contavam de Madri havia um esplendor que intrigava muito o menino gatuno que rondava as conversas dos adultos. O ‘Cristo de Medinaceli’ era o mais milagroso, o ‘Retiro’ tinha um bosque e uma extensão de água que podia parecer o mar, no ‘Valle de los Caídos’ estava a cruz mais alta do mundo, na praça de ‘Las Ventas’ somente tinham sucesso as grandes figuras das touradas, os camarões frescos e a cerveja espumosa do ‘Abuelo’ não tinham comparação. Mandavam postais e nelas o céu de Madri sobre a ‘Cibeles’ e a perspectiva da rua de Alcalá e sobre as torres da praça de Espanha havia um azul mais puro que o dos mares dos mapas.
A Feira do Campo foi um longo tormento de maquinarias esquentando ao sol de finais de maio e princípios de junho. No mesmo dia a excursão em ônibus ao ‘El Escorial’ e o ‘Valle de los Caídos’ nos confundiram num tédio de câmaras funerárias e esplanadas graníticas. Uma vaga rebeldia antifranquista me acentuava o mau humor de adolescente cansado de ser rebocado pelas expedições dos adultos. O Museu do Prado e o Museu do Exército se misturavam numa extenuante sucessão de quadros de santos e canhões. As águas do Retiro não eram essa espécie de mar que eu imaginava desde pequeno escutando os relatos fantasiosos dos adultos, mas uma grande piscina de água turva sem muito interesse para quem havia navegado desde antes de ter uso da razão pelos vibrantes mares do cinema.
De vez em quando eu escapava da vigilância dos meus avós e me aventurava fora da pensão para explorar Madri por minha conta, com a alegria e o medo de me encontrar sozinho numa cidade que parecia imensa. Eu me via como um adulto: tinha quatorze anos, fumava, vestia calças compridas mesmo fazendo calor de verão, me penteava repartindo o cabelo. Pela primeira vez em minha vida as ruas que eu caminhava estavam habitadas exclusivamente por desconhecidos. Meus olhos se perdiam detrás das mulheres. As mulheres em Madri eram mais altas, mais descaradas, mais jovens. Você as olhava nos olhos e elas mantinham o olhar. Você as olhava não por impertinência nem por desafio, mas porque ficava pasmado e não se dava conta da fixação provinciana com que se olhava com todos seus olhos. Fazia calor e as garotas vestiam minissaias e camisas negras coladas. Você podia encostar-se à sacada do quarto de pensão aberto no qual nunca cessava o clamor do tráfego e as imagens da cidade e das mulheres seguiam agitando-se na câmara escura da memória e não o deixava dormir, apesar do cansaço pelas caminhadas.
Não lembro se por casualidade ou de propósito desemboquei uma manhã na Feira do Livro. O único lugar onde até então eu havia visto muitos livros juntos era a biblioteca pública de Úbeda. Porém, a maioria se tratava de edições antigas, muito desgastadas, com capas de encadernação muito lúgubres, tudo de acordo com a atmosfera um pouco decrépita daquele lugar, com as lâmpadas baixas que não dissipavam a penumbra e com a tosse espectral de bibliotecários anciãos.
Eu não estava preparado para o assombro de tantos estandes alinhados à sombra fresca das árvores, de tantos livros recém impressos, com capas em cores vivas que exageravam seu efeito pelo fato de sua multiplicação. A Feira do Livro era onde se juntava a multidão de Madri, a amplidão do espaço, o tamanho das árvores, a largueza das perspectivas, a tontura da solidão e do medo soterrado de me perder e do nervosismo das mulheres, tudo junto. Os museus, as exposições agrícolas e as criptas funerárias do ‘El Escorial’ e do ‘Valle de los Caídos’ pertenciam a outro mundo com o qual eu, com minha soberba de adolescente caladão e zangado, não tinha nada a ver. Tinha a ver ir pela rua fumando um cigarro sem medo de que me flagrasse alguém da minha família numa cidade demasiado pequena na qual todo mundo me conhecia; era imaginar ver-me nas vitrines um pouco mais velho, havia deixado o cabelo crescer e vivia em Madri, e frequentava com desenvoltura os lugares onde se encontravam os escritores, os cafés, a Biblioteca Nacional, a Feira do Livro.
Na minha cidade, nas vitrines das papelarias, eu costumava ficar olhando as capas de uns poucos livros que permaneciam meses no mesmo lugar invariável, entre cadernos, pesa-papéis, álbuns de primeira comunhão, estojos de lápis de cores. Em algumas daquelas vitrines as cores das capas iam se desbotando ao passar do tempo. Em somente um posto da feira de Madri havia tantos livros que você podia ficar horas interas olhando sem ver a todos. Não lembro se vi a algum escritor, ainda que não acredito que tivesse reconhecido a algum. Os escritores que eu lia -Julio Verne, Dumas, Gustavo Adolfo Bécquer- estavam mortos há muito tempo, de modo que talvez não imaginasse que a literatura fosse uma profissão que alguém pudesse exercer no tempo presente. Eu às vezes me imaginava escritor, menos por vocação do que por fantasia caprichosa, como me imaginava também astronauta, correspondente de guerra e náufrago numa ilha deserta. Como um menino sozinho numa loja de brinquedos, fiquei embriagado entre os livros, o calor e a gente, olhando preços, contando o pouco dinheiro que levava, com muita cautela, porque haviam me advertido que Madri era uma cidade cheia de carteiristas. Absurdamente acabei comprando o ‘Martín Fierro’ e uma historia da Máfia. Voltei tão tarde à pensão que meus avós já temiam que estivesse perdido, que tivesse me acontecido algo, naquela cidade que no fundo nos dava tanto medo.
A Feira do Campo foi um longo tormento de maquinarias esquentando ao sol de finais de maio e princípios de junho. No mesmo dia a excursão em ônibus ao ‘El Escorial’ e o ‘Valle de los Caídos’ nos confundiram num tédio de câmaras funerárias e esplanadas graníticas. Uma vaga rebeldia antifranquista me acentuava o mau humor de adolescente cansado de ser rebocado pelas expedições dos adultos. O Museu do Prado e o Museu do Exército se misturavam numa extenuante sucessão de quadros de santos e canhões. As águas do Retiro não eram essa espécie de mar que eu imaginava desde pequeno escutando os relatos fantasiosos dos adultos, mas uma grande piscina de água turva sem muito interesse para quem havia navegado desde antes de ter uso da razão pelos vibrantes mares do cinema.
De vez em quando eu escapava da vigilância dos meus avós e me aventurava fora da pensão para explorar Madri por minha conta, com a alegria e o medo de me encontrar sozinho numa cidade que parecia imensa. Eu me via como um adulto: tinha quatorze anos, fumava, vestia calças compridas mesmo fazendo calor de verão, me penteava repartindo o cabelo. Pela primeira vez em minha vida as ruas que eu caminhava estavam habitadas exclusivamente por desconhecidos. Meus olhos se perdiam detrás das mulheres. As mulheres em Madri eram mais altas, mais descaradas, mais jovens. Você as olhava nos olhos e elas mantinham o olhar. Você as olhava não por impertinência nem por desafio, mas porque ficava pasmado e não se dava conta da fixação provinciana com que se olhava com todos seus olhos. Fazia calor e as garotas vestiam minissaias e camisas negras coladas. Você podia encostar-se à sacada do quarto de pensão aberto no qual nunca cessava o clamor do tráfego e as imagens da cidade e das mulheres seguiam agitando-se na câmara escura da memória e não o deixava dormir, apesar do cansaço pelas caminhadas.
Não lembro se por casualidade ou de propósito desemboquei uma manhã na Feira do Livro. O único lugar onde até então eu havia visto muitos livros juntos era a biblioteca pública de Úbeda. Porém, a maioria se tratava de edições antigas, muito desgastadas, com capas de encadernação muito lúgubres, tudo de acordo com a atmosfera um pouco decrépita daquele lugar, com as lâmpadas baixas que não dissipavam a penumbra e com a tosse espectral de bibliotecários anciãos.
Eu não estava preparado para o assombro de tantos estandes alinhados à sombra fresca das árvores, de tantos livros recém impressos, com capas em cores vivas que exageravam seu efeito pelo fato de sua multiplicação. A Feira do Livro era onde se juntava a multidão de Madri, a amplidão do espaço, o tamanho das árvores, a largueza das perspectivas, a tontura da solidão e do medo soterrado de me perder e do nervosismo das mulheres, tudo junto. Os museus, as exposições agrícolas e as criptas funerárias do ‘El Escorial’ e do ‘Valle de los Caídos’ pertenciam a outro mundo com o qual eu, com minha soberba de adolescente caladão e zangado, não tinha nada a ver. Tinha a ver ir pela rua fumando um cigarro sem medo de que me flagrasse alguém da minha família numa cidade demasiado pequena na qual todo mundo me conhecia; era imaginar ver-me nas vitrines um pouco mais velho, havia deixado o cabelo crescer e vivia em Madri, e frequentava com desenvoltura os lugares onde se encontravam os escritores, os cafés, a Biblioteca Nacional, a Feira do Livro.
Na minha cidade, nas vitrines das papelarias, eu costumava ficar olhando as capas de uns poucos livros que permaneciam meses no mesmo lugar invariável, entre cadernos, pesa-papéis, álbuns de primeira comunhão, estojos de lápis de cores. Em algumas daquelas vitrines as cores das capas iam se desbotando ao passar do tempo. Em somente um posto da feira de Madri havia tantos livros que você podia ficar horas interas olhando sem ver a todos. Não lembro se vi a algum escritor, ainda que não acredito que tivesse reconhecido a algum. Os escritores que eu lia -Julio Verne, Dumas, Gustavo Adolfo Bécquer- estavam mortos há muito tempo, de modo que talvez não imaginasse que a literatura fosse uma profissão que alguém pudesse exercer no tempo presente. Eu às vezes me imaginava escritor, menos por vocação do que por fantasia caprichosa, como me imaginava também astronauta, correspondente de guerra e náufrago numa ilha deserta. Como um menino sozinho numa loja de brinquedos, fiquei embriagado entre os livros, o calor e a gente, olhando preços, contando o pouco dinheiro que levava, com muita cautela, porque haviam me advertido que Madri era uma cidade cheia de carteiristas. Absurdamente acabei comprando o ‘Martín Fierro’ e uma historia da Máfia. Voltei tão tarde à pensão que meus avós já temiam que estivesse perdido, que tivesse me acontecido algo, naquela cidade que no fundo nos dava tanto medo.
Programação da "LXIX Feira do Livro de Madri" de 27 de maio a 13 de junho