De acordo com o constitucionalista francês Carre de Malberg, no clássico “Teoria Geral do Estado”, cuja primeira edição em francês é de 1920, a soberania é “o caráter supremo de um poder” e portanto “quando se diz que o Estado é soberano, há que entender por isso que na esfera em que sua autoridade é chamada a exercer-se, possui uma 'potestas' que não depende e que não pode ser igualada por nenhum outro poder”. Foi outro francês, Jean Bodin, o primeiro a desenvolver o conceito de soberania, quando afirmou por volta de 1576 que “a soberania é o poder absoluto e perpétuo de uma República”. Como leciona o professor Dalmo de Abreu Dallari, Bodin utiliza a expressão “República” como equivalente ao atual conceito de “Estado”. Por fim, um terceiro francês, Jean-Jacques Rosseau publica na primavera de 1762 sua obra máxima “O Contrato Social”, destacando o conceito de soberania e atribuindo-lhe sua titularidade não mais à pessoa do soberano, mas ao povo.
Para o jurista Miguel Reale, a soberania é “o poder de organizar-se juridicamente e de fazer valer dentro de seu território a universalidade de suas decisões nos limites dos fins éticos de convivência”. Pois foi com base na sua soberania que o Brasil aprovou em 5 de março de 1998 a Lei do Tiro de Destruição, mais conhecida como Lei do Abate, que entrou em vigor domingo passado, dia 17 de outubro.
Na verdade, a Lei nº 9.614/98, denominada Lei do Abate, apenas alterou o art. 303 do Código Brasileiro de Aeronáutica, instituído pela Lei nº 7.565/86, introduzindo o parágrafo segundo que determina: “Esgotados os meios coercitivos legalmente previstos, a aeronave será classificada como hostil, ficando sujeita à medida de destruição, nos casos dos incisos do caput deste artigo e após autorização do Presidente da República ou autoridade por ele delegada”. Desta forma, a Força Aérea fica autorizada a derrubar aviões clandestinos que não respeitarem os sinais de aviso para pouso. De acordo com informação da Aeronáutica, os pilotos que não obedecerem à série de recomendações para se identificar e fazer pouso para fiscalização serão advertidos com um tiro de alerta. Numa segunda etapa, serão disparados tiros na carenagem do avião clandestino. Por fim a Força Aérea explodirá a aeronave clandestina.
Essa medida se destina de maneira especial a combater o tráfico ilegal de drogas e armas, além de controlar o espaço aéreo nacional. Por isso, existem rotas nas quais os aviões estarão mais visados a interceptação, por exemplo, as fronteiras com o Paraguai, Bolívia, Peru e Colômbia. O grande problema será confundir aeronaves do tráfico de drogas com os aviões de fazendeiros que, para evitar o pagamento das taxas necessárias, trafegam pelo espaço aéreo nacional sem qualquer plano de vôo.
A Lei do Abate passou seis anos engavetada por culpa da pressão dos EUA, que aplica sanções comerciais aos países que possuem normas assemelhadas. Essas pressões são inaceitáveis a um país que se considera soberano. Mesmo sabendo que o conceito de soberania encontra-se seriamente abalado pela globalização, devemos fazer valer nossas normas jurídicas como produto da nossa soberania, conquistada com a Independência do Império Lusitano em 1822. Ademais, os procedimentos de abate de aeronaves no espaço aéreo nacional estão em estrita obediência aos quesitos internacionais de segurança. Em 2001, a Força Aérea do Peru derrubou de o avião de uma missionária estadunidense por engano, matando as duas pessoas que estavam a bordo. Por isso, os EUA suspenderam um acordo internacional de interceptação aérea para combater o narcotráfico no espaço aéreo andino.
Os EUA devem compreender que a Lei do Abate, se aplicada corretamente, protegerá não apenas a sociedade brasileira do perigo do tráfico ilegal de drogas e armas, mas também a sociedade internacional. Sem contar o perigo que representa o terrorismo aéreo internacional, como bem sabem os EUA. A soberania brasileira – ou o pouco que sobra dela, deve ser respeitada por todas as nações, sem ufanismo barato, da mesma maneira que respeitamos a dos demais países. Em respeito e defesa da sociedade brasileira devemos prosseguir na execução da Lei do Abate.