Não matarás.
Quem matar, se entrega a si próprio
nas mãos do Senhor da história
e não será apenas maldito
na memória dos homens,
mas também no julgamento de Deus.
Cardeal D. Paulo Evaristo Arns,
no culto ecumênico pela morte
do jornalista Vladimir Herzog,
em 31 de outubro de 1975.
O jornal The Washington Post comprovou em maio que no caso das chocantes fotos da tortura praticada pelos soldados estadunidenses na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, três dos iraquianos que aparecem nas fotos mais terríveis sequer faziam parte dos interrogatórios, e que portanto foram torturados por pura diversão e para impor disciplina. Não que a tortura fosse menos condenável no caso daquelas pessoas estarem sendo interrogadas. Muito pelo contrário, o fato apenas realça o grau de barbárie a que chegou a civilização neste começo de século XXI.
A “Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”, de 1984, em seu artigo 1º conceitua a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões”.
As fotos da tortura na prisão de Abu Ghraib chocaram o mundo e levaram muitos militares, incluindo oficiais graduados, à Corte Marcial. Vale ressaltar que as fotos somente foram publicadas porque os EUA são, sem tergiversações, a maior democracia do mundo, além de terem uma Constituição que garante o pleno exercício das liberdades públicas, como por exemplo a liberdade de expressão. O compromisso americano com os direitos humanos é reavivado pela Suprema Corte dos EUA, mesmo nos atuais tempos de Bush e de toda a palhaçada jurídica que é a prisão dos talibães em Guantánamo, Cuba, onde centenas de presos esperam numa base americana por mais de dois anos sem qualquer acusação formal.
Desde 11 de setembro de 2001 se debate nos EUA sobre o uso ou não de “pressão psicológica e força física”, isto é, tortura, no interrogatório dos presos da “guerra contra o terrorismo”. O precedente mundial sobre o uso oficial da tortura cabe ao estado de Israel, pois foi o único país do mundo a legalizar a tortura, entre 1987 e 1999. Em 1987, uma comissão presidida pelo juiz Moshe Landau elaborou uma relação de torturas permitidas no país – denominada então “força psicológica e física moderada” -, que teve vigência até sua revogação em 1999 pela Corte Suprema Israelense.
E de nada vale descobrir que o governo americano, através do ex-secretário de Estado Henry Kissinger, apoiou as violações aos direitos humanos cometidos pela ditadura militar na Argentina – onde “desapareceram” 30 mil pessoas-, porque foi a política exterior dos EUA no governo Jimmy Carter que cobrou a volta da democracia a América Latina e o respeito aos direitos humanos. Três meses depois do golpe militar na Argentina, Kissinger se reuniu com os militares golpistas e nem sequer reclamou a liberdade de pelo menos três cidadãs americanas - Elida Messina, Gwenda Loken López e Mercedes Naveiro Bender – que nesse momento eram torturadas naquele país.
De maneira que a luta pelo respeito aos direitos humanos existe mesmo dentro da maior potência mundial. Lá, como em quase todas as partes, existem aqueles que se importam pelo ser humano, o defendem das injustiças e lutam pela sua dignidade. E aqueles que se importam com seus interesses e com pouca coisa mais.
Ademais, para nós latinos nunca foi preciso exemplo de ninguém para que sejamos os primeiros em firmar convenções de proteção aos direitos humanos, e os primeiros, também, em cinicamente descumpri-las. Basta para tanto, recordarmos da Operação Condor – a estratégia de cooperação entre muitas ditaduras sul-americanas para vigiar, torturar e eliminar seus opositores.
Acontece que tanto na Argentina, nos EUA e em muitos outros países da América Latina, o passado foi esclarecido e os crimes foram punidos. O período da chamada “guerra suja” foi revisitado, o baú de segredos e maldades cometidas foi aberto. Aqui no Brasil isso nunca ocorreu. A anistia de 1979 funcionou como uma espécie de silenciosa passagem de página na história deste período triste. Igual a Espanha, no seu período de transição, houve no Brasil um pacto de silêncio sobre os anos da ditadura militar. Tudo em nome da democracia e da volta à normalidade constitucional. Entretanto, ainda que muitos assim não o considerem, anistia não significa esquecimento. A dignidade humana aviltada não pode ser simplesmente esquecida, em nome de um passado anistiado. Estas vozes do passado gritam e seu grito de justiça chega até o presente, ressoando nas mentes daquelas pessoas comprometidas com a verdade.
Por isso, a sociedade brasileira ficou chocada com as fotos publicadas na semana passada pelo jornal Correio Braziliense. Independente de que as fotos sejam de Vladimir Herzog ou do padre Léopold D'Astous, as fotos mostram o terror da tortura no Brasil e revelam um crime cometido pelo Estado brasileiro. E nos envergonha tanto quanto a primeira nota oficial do Exército, assinada pelo general Antônio Gabriel Esper, chefe do Centro de Comunicação do Exército.
O jornalista e editor da TV Cultura Vladimir Herzog morreu em outubro de 1975 no DOI-CODI, órgão de repressão da ditadura militar. De acordo com o IPM instaurado a mando do presidente Geisel, o jornalista cometeu suicidou, enforcando-se em sua cela. Esta versão nunca foi aceita e a sua morte instaurou definitivamente a luta contra a tortura e morte de opositores do regime militar. Anos mais tarde, quando já finalizada a ditadura, o governo brasileiro reconheceu que Vladimir Herzog foi morto nas dependências do Exército e a família foi indenizada.
Por que em plena democracia no distante ano de 2004 o Exército brasileiro ainda insiste em defender algo tão irracional como a tortura? Não seria melhor afirmar seu compromisso com a legalidade constitucional e democrática do país e condenar os crimes do passado? Por que militares honrados insistem em proteger um passado tão canalha? Que sejam dadas todas as explicações necessárias para desvendar o caso e que nada, absolutamente nada, seja escondido da sociedade brasileira. Todos queremos a verdade.
Afinal, neste mês de outubro se completam 29 anos da morte de Herzog e 27 anos da demissão do então ministro do Exército, Sílvio Frota, pelo presidente Ernesto Geisel. Não se deve esquecer que com a demissão de Frota, foi possível a Geisel levar adiante a abertura política do regime e, desde o golpe de 1964, fazer valer a autoridade de um Presidente da República sobre as forças armadas. Mesmo sendo um presidente militar e o regime constitucional um arremedo de Constituição.
Quem matar, se entrega a si próprio
nas mãos do Senhor da história
e não será apenas maldito
na memória dos homens,
mas também no julgamento de Deus.
Cardeal D. Paulo Evaristo Arns,
no culto ecumênico pela morte
do jornalista Vladimir Herzog,
em 31 de outubro de 1975.
O jornal The Washington Post comprovou em maio que no caso das chocantes fotos da tortura praticada pelos soldados estadunidenses na prisão de Abu Ghraib, em Bagdá, três dos iraquianos que aparecem nas fotos mais terríveis sequer faziam parte dos interrogatórios, e que portanto foram torturados por pura diversão e para impor disciplina. Não que a tortura fosse menos condenável no caso daquelas pessoas estarem sendo interrogadas. Muito pelo contrário, o fato apenas realça o grau de barbárie a que chegou a civilização neste começo de século XXI.
A “Convenção contra a Tortura e outros tratamentos ou penas cruéis, desumanos ou degradantes”, de 1984, em seu artigo 1º conceitua a tortura como “qualquer ato pelo qual dores ou sofrimentos agudos, físicos ou mentais, são infligidos intencionalmente a uma pessoa a fim de obter, dela ou de terceira pessoa, informações ou confissões”.
As fotos da tortura na prisão de Abu Ghraib chocaram o mundo e levaram muitos militares, incluindo oficiais graduados, à Corte Marcial. Vale ressaltar que as fotos somente foram publicadas porque os EUA são, sem tergiversações, a maior democracia do mundo, além de terem uma Constituição que garante o pleno exercício das liberdades públicas, como por exemplo a liberdade de expressão. O compromisso americano com os direitos humanos é reavivado pela Suprema Corte dos EUA, mesmo nos atuais tempos de Bush e de toda a palhaçada jurídica que é a prisão dos talibães em Guantánamo, Cuba, onde centenas de presos esperam numa base americana por mais de dois anos sem qualquer acusação formal.
Desde 11 de setembro de 2001 se debate nos EUA sobre o uso ou não de “pressão psicológica e força física”, isto é, tortura, no interrogatório dos presos da “guerra contra o terrorismo”. O precedente mundial sobre o uso oficial da tortura cabe ao estado de Israel, pois foi o único país do mundo a legalizar a tortura, entre 1987 e 1999. Em 1987, uma comissão presidida pelo juiz Moshe Landau elaborou uma relação de torturas permitidas no país – denominada então “força psicológica e física moderada” -, que teve vigência até sua revogação em 1999 pela Corte Suprema Israelense.
E de nada vale descobrir que o governo americano, através do ex-secretário de Estado Henry Kissinger, apoiou as violações aos direitos humanos cometidos pela ditadura militar na Argentina – onde “desapareceram” 30 mil pessoas-, porque foi a política exterior dos EUA no governo Jimmy Carter que cobrou a volta da democracia a América Latina e o respeito aos direitos humanos. Três meses depois do golpe militar na Argentina, Kissinger se reuniu com os militares golpistas e nem sequer reclamou a liberdade de pelo menos três cidadãs americanas - Elida Messina, Gwenda Loken López e Mercedes Naveiro Bender – que nesse momento eram torturadas naquele país.
De maneira que a luta pelo respeito aos direitos humanos existe mesmo dentro da maior potência mundial. Lá, como em quase todas as partes, existem aqueles que se importam pelo ser humano, o defendem das injustiças e lutam pela sua dignidade. E aqueles que se importam com seus interesses e com pouca coisa mais.
Ademais, para nós latinos nunca foi preciso exemplo de ninguém para que sejamos os primeiros em firmar convenções de proteção aos direitos humanos, e os primeiros, também, em cinicamente descumpri-las. Basta para tanto, recordarmos da Operação Condor – a estratégia de cooperação entre muitas ditaduras sul-americanas para vigiar, torturar e eliminar seus opositores.
Acontece que tanto na Argentina, nos EUA e em muitos outros países da América Latina, o passado foi esclarecido e os crimes foram punidos. O período da chamada “guerra suja” foi revisitado, o baú de segredos e maldades cometidas foi aberto. Aqui no Brasil isso nunca ocorreu. A anistia de 1979 funcionou como uma espécie de silenciosa passagem de página na história deste período triste. Igual a Espanha, no seu período de transição, houve no Brasil um pacto de silêncio sobre os anos da ditadura militar. Tudo em nome da democracia e da volta à normalidade constitucional. Entretanto, ainda que muitos assim não o considerem, anistia não significa esquecimento. A dignidade humana aviltada não pode ser simplesmente esquecida, em nome de um passado anistiado. Estas vozes do passado gritam e seu grito de justiça chega até o presente, ressoando nas mentes daquelas pessoas comprometidas com a verdade.
Por isso, a sociedade brasileira ficou chocada com as fotos publicadas na semana passada pelo jornal Correio Braziliense. Independente de que as fotos sejam de Vladimir Herzog ou do padre Léopold D'Astous, as fotos mostram o terror da tortura no Brasil e revelam um crime cometido pelo Estado brasileiro. E nos envergonha tanto quanto a primeira nota oficial do Exército, assinada pelo general Antônio Gabriel Esper, chefe do Centro de Comunicação do Exército.
O jornalista e editor da TV Cultura Vladimir Herzog morreu em outubro de 1975 no DOI-CODI, órgão de repressão da ditadura militar. De acordo com o IPM instaurado a mando do presidente Geisel, o jornalista cometeu suicidou, enforcando-se em sua cela. Esta versão nunca foi aceita e a sua morte instaurou definitivamente a luta contra a tortura e morte de opositores do regime militar. Anos mais tarde, quando já finalizada a ditadura, o governo brasileiro reconheceu que Vladimir Herzog foi morto nas dependências do Exército e a família foi indenizada.
Por que em plena democracia no distante ano de 2004 o Exército brasileiro ainda insiste em defender algo tão irracional como a tortura? Não seria melhor afirmar seu compromisso com a legalidade constitucional e democrática do país e condenar os crimes do passado? Por que militares honrados insistem em proteger um passado tão canalha? Que sejam dadas todas as explicações necessárias para desvendar o caso e que nada, absolutamente nada, seja escondido da sociedade brasileira. Todos queremos a verdade.
Afinal, neste mês de outubro se completam 29 anos da morte de Herzog e 27 anos da demissão do então ministro do Exército, Sílvio Frota, pelo presidente Ernesto Geisel. Não se deve esquecer que com a demissão de Frota, foi possível a Geisel levar adiante a abertura política do regime e, desde o golpe de 1964, fazer valer a autoridade de um Presidente da República sobre as forças armadas. Mesmo sendo um presidente militar e o regime constitucional um arremedo de Constituição.