Avante, filhos da Pátria,
o dia da Gloria chegou.
O estandarte ensangüentado da tirania
contra nós se levanta.
Ouvís nos campos rugirem
esses ferozes soldados?
Vêm eles até nós
degolar nossos filhos, nossas mulheres.
Às armas cidadãos!
Formai vossos batalhões!
Marchemos, marchemos!
Nossa terra do sangue impuro se saciará!
A Marselhesa
Rouget de Lisle & Dietrich,
Hino nacional francês
O mundo ficou paralisado diante das notícias sobre a revolta urbana na cidade de Paris. O que muitos já denominam de “Revolução do Subúrbio” ou “Intifada Francesa” estourou, pondo em xeque-mate a política francesa de integração social dos imigrantes, e de seus descendentes, que ocupam os bairros pobres da periferia das grandes cidades, especialmente na de Paris. Mais de trezentas localidades já foram palco de distúrbios por toda a França. O balaço parcial dos incidentes aponta para mais de 6.600 veículos destruídos, quase 1.800 pessoas presas, 11.500 policiais destacados para conter a violência e um morto.
Tudo começou em Clichy-sous-Bois, periferia parisiense, no sábado, dia 27 de outubro, quando dois adolescentes, Bouna Traore e Zyed Benna, de 15 e 17 anos, respectivamente, morreram eletrocutados, quando fugiam da polícia. Nesta mesma noite, cerca de 200 jovens começam a revolta e incendeiam quinze veículos. No dia 29 de outubro, uma passeata silenciosa de cerca de quinhentas pessoas protesta pela morte dos adolescentes, vestindo camisetas onde se lia: Mortos por nada!
O segundo fato que aumentou a combustão da revolta ocorreu dia 30 de outubro, quando uma bomba de gás lacrimogêneo, de uso policial, foi jogada dentro de uma mesquita da periferia de Paris, La Forestiére, durante um momento de oração.
A resposta do governo, através do Ministro do Interior, Nicolas Sarkozy - potencial candidato da direita para ocupar a Presidência francesa em 2007-, foi endurecer a repressão policial, defendendo a política da “tolerância zero”, além de negar a participação da polícia na morte dos adolescentes. Ou seja, tratando o problema como simples caso de violência urbana de gangues, e não como um caso social. Para complicar ainda mais, o ministro utilizou uma linguagem pejorativa para referir-se aos jovens revoltosos, o que apenas realçou seu papel de vilão dos excluídos do sistema, moradores do subúrbio. No Congresso francês, a oposição de esquerda lembra o fato de que o ministro extinguiu a “policia de bairro”, criada pelo ex-Premier socialista Leonel Jospin, bem como o corte brutal nos gastos sociais.
Desde então, a violência campeia nas madrugadas da periferia de Paris, estendendo-se por diversas outras cidades francesas, sendo os principais atores do movimento jovens desempregados e sem estudos, entre 14 e 20 anos de idade. O momento crucial ocorreu na noite do dia 5 de novembro, quando quase 1.300 veículos foram queimados e mais de trezentos jovens foram presos.
Depois que o Presidente Jacques Chirac se pronuncia publicamente destacando que a prioridade absoluta seria o restabelecimento da segurança e da ordem pública, o Primeiro-ministro Dominique de Villepin autoriza que seja decretado “toque de recolher” em todo o país. Como se não bastasse, desde o dia 8 de outubro, está em vigor na França o “estado de emergência”, pelo qual se permite ao governo aplicar “medidas extraordinárias para garantir a ordem pública”, como por exemplo suspensão de habeas corpus, proibição de circulação e de reunião. Essa legislação remonta a 1955, período em que a França se encontrava metida até o pescoço na guerra colonialista contra a independência da Argélia.
A periferia de Paris é habitada por imigrantes ilegais, principalmente oriundos do Marrocos, Argélia, Tunísia e Mali. Essa população, que oscila entre 30 e 150 mil pessoas, sofre por altos índices de desemprego, violência, drogas, discriminação, extremismo islâmico e pela precariedade sanitária, frutos do abandono estatal. Se na França o desemprego roda a casa dos 9,9% da população ativa, na periferia atinge os 20,7%, chegando aos 26% com relação aos jovens suburbanos do norte de Paris. O governo direitista francês já cortou, desde os tempos de Jean-Pierre Raffarin, em 2002, mais de trezentos milhões de euros que seriam aplicados em programas sociais para essa parte da população, destacando programas de coesão social e de moradia popular.
Essa periferia, denominada em francês ‘banlieue’, pela própria origem da palavra já se explica. No século XVII, o Rei expulsava, em francês bannir, à periferia de um determinado lugar, lieu em francês, àqueles súditos considerados perigosos. Hoje, o sistema expulsa para a periferia os pobres de todos os credos e cores. Para o sociólogo Alain Touraine, “a França entrou numa fase aguda de desintegração marcada por sua vez pela rejeição do país pelos grupos minoritários e por um progressivo fechamento comunitarista”. Para ele, “os jovens não querem mudar as coisas, mas destruí-las”.
Durante mais de cem anos, a República Francesa, com seus valores universais, recebeu operários poloneses, italianos, espanhóis e portugueses, transformado seus filhos na vibrante classe media francesa. Entretanto, esses mesmos valores universais não seduzem, nem integram, àqueles que vieram de seu antigo império colonial. Como afirma o sociólogo Alain Touraine, sobre os bairros dominados pelo islã, a segunda religião do país: “Hoje, na França, se produzem fenômenos de segregação, guetos. Antes não existiam bairros homogêneos, mas agora há bairros inteiros nos quais ninguém compra carne de porco nem bebe vinho". E conclui: “o problema hoje não é a exploração, mas a exclusão".
O fracasso do estado francês, essa imensa máquina de valores republicanos universalistas capaz de fabricar franceses felizes, é patente. Os Trinta Gloriosos anos de crescimento econômico, período comandado por Charles de Gaulle, suplantou a perda do império colonial durante as décadas de 1950 e 1960. Contudo, o país não se reconhece, e tampouco se entende. A rejeição da Constituição Européia no referendum deste ano demonstra a falta de harmonia da sociedade francesa atual, que juntamente com a alemã, formam a locomotiva da União Européia. Por outro lado, o crescimento eleitoral da ultra-direitista Frente Nacional, comandada pelo fascista Jean-Marie Le Pen, que chegou ao segundo turno nas eleições presidências de 2002, se aproveita da revolta para ampliar suas profecias apocalípticas contra a imigração.
Enfim, o problema francês possui uma vitrine, que no entanto não ilustra a totalidade da exclusão, que vai além da cor e do credo: A seleção francesa de futebol, que joga com sete negros na equipe titular. Entretanto, não há nenhum no Parlamento nacional.