quarta-feira, outubro 14, 2009

O dilema do socialismo europeu


O dilema do socialismo europeu

A crise de tantos partidos socialdemocratas se deve, em grande medida, ao fato de que adotaram esquemas neoliberais nos anos noventa e mutilaram sua própria identidade. A Terceira Via de Blair só era 'tatcherismo' sorridente

SAMI NAÏR – El País - 13/10/2009

Tradução de Antonio de Freitas Jr.

Os partidos socialistas europeus atravessam uma crise extremadamente profunda. Se deixarmos de lado o caso dos países nórdicos, onde, em seu conjunto, a tradição socialista é muito particular e o conflito social menos agudo, ou incluso dos partidos socialdemocratas dos países do Leste europeu, demasiado recentes ainda para serem julgados, constatamos, com a exceção notável da Espanha, que em todos os outros lugares -França, Grã-Bretanha, Alemanha, Itália- os partidos socialistas estão de capa caída.

Na França, a crise começou a princípios do ano 2000 com o fracasso estrepitoso do experimento da "esquerda plural". A aplicação de uma política de recuperação econômica em 1997 foi seguida, a partir de 1999, por uma política de adaptação liberal contrária ao programa inicial. Simbolicamente, esta mudança se encarnou na célebre frase do então líder socialista Lionel Jospin -"não posso fazer nada"- no momento em que a multinacional Michelin anunciou ‘superlucros’ e, ao mesmo tempo, deixava no desemprego a milhares de trabalhadores devido às mudanças de locais de trabalho. Foi aí que o Partido Socialista Francês perdeu o povo.

Porém, há algo ainda mais grave: o Partido Socialista Francês não viu a chegada da crise com a globalização liberal; foi surpreendido e desconcertado pela estratégia de Nicolas Sarkozy, que congregou ao redor de um único grande partido liberal-conservador a pessoas de direitas, de extrema-direita, de centro e da esquerda social-liberal. Por último, o PS é incapaz de fechar fileiras em torno a um candidato acreditável, posto que nenhum dos/as aspirantes que lutam pelas próximas eleições presidenciais possuem nem a personalidade, nem a profundidade de visão necessária para derrotar a Nicolas Sarkozy. Esta situação engendra a apatia das classes populares, a desorientação das classes médias e o aumento da abstenção eleitoral.

Na Grã-Bretanha, o fracasso do ‘blairismo’ ficou simbolizado pela própria saída de Tony Blair. A famosa Terceira Via não foi de fato mais que uma adaptação sorridente e conservadora do ‘tatcherismo’ baseado no desmantelamento dos serviços públicos e na privatização generalizada. Hoje, o Partido Trabalhista está em queda livre. Durante seu último congresso, Gordon Brown propôs um ‘Welfare State’ (Estado de bem-estar) centrado num "novo modelo econômico, social e político", baseado na "regulação do mercado". Mas em nenhuma parte do programa se especificava como financiar este ‘Welfare State’ e muito menos como convencer às classes medias que querem ao mesmo tempo mais Estados de bem-estar e menos impostos.

Por não estar na zona euro, Grã-Bretanha tem, sem dúvida, maior liberdade para fazer a gestão de uma dívida pública de 80% e um déficit orçamentário de 12,4%; porém, o desemprego (3 milhões de pessoas) aumentará e não vemos como poderíamos contê-lo sem incentivos fiscais, e, portanto, sem um endividamento crescente.

Na Itália, a decomposição da esquerda socialista se produziu sob a forma de um buraco negro que a tragou. A aliança no seio do PD dos ex-comunistas e de uma parte da Democracia Cristã levou a dois desenlaces fatais: de um lado, ao desaparecimento do socialismo político e ideológico do terreno político italiano; do outro, à abertura há quase 10 anos de uma ampla avenida eleitoral para o populismo reacionário de Silvio Berlusconi. A crise atual do ‘berlusconismo’, em lugar de beneficiar à esquerda, põe, sobretudo, em evidencia sua impotência.

Na Alemanha, o SPD está em crise desde que Oskar Lafontaine se negou a apoiar no ano 2000 a orientação liberal que preconizava Gerhard Schröder. O SPD acabou perdendo as eleições e aceitando um governo de coalizão com a CDU. Acostumado a estabelecer alianças com a direita, não soube, desta vez, sacar proveito porque demonstrou ser incapaz de oferecer um discurso próprio e acreditável sobre a crise econômica. O caso é que, de momento, é o partido socialista europeu que maiores perdas sofreu. Ademais de sua divisão pela criação na esquerda do ‘Die Linke’, perdeu 10 milhões de votos desde 1998, em beneficio tanto do ‘Die Linke’ como dos Verdes, dos Liberais e da CDU.

O SPD alemão compartilha hoje com o PS francês a mesma crise de liderança e a eleição recente de Sigmar Gabriel, com fama de centrista sem matiz ideológico, estão longe de concitar unanimidade.

Este breve resumo permite perceber algumas tendências de fundo.

Em primeiro lugar, os partidos socialistas ocidentais aceitaram nos anos noventa se adaptar à globalização liberal (batizada como ‘terceira via’ ou ‘cultura de governo’) não só sem oferecer um projeto alternativo a seu eleitorado central (classes médias e classes populares), mas também sem sacar todas as consequências ideológicas desta eleição.

Com isso, ganharam sem dúvida em eficácia governamental, porém mutilaram gravemente sua própria identidade. Dai o paradoxo atual: são arrastados pela crise do liberalismo enquanto que a direita liberal não duvida em aplicar as receitas tradicionais do ‘Welfare State’ para fazer frente ao temporal. Dito de outra maneira, a direita se mostra mais pragmática que a esquerda, a qual, depois de haver perdido sua identidade socialista, acreditou plenamente nas virtudes do social-liberalismo.

Em segundo lugar, em todas as partes da Europa ocidental, os partidos socialistas não sabem como reagir diante da tendência à "direitização" da sociedade, que é o resultado da instabilidade criada pela desregulamentação econômica e social destes últimos anos e que se encarna numa forte demanda por segurança (social, econômica e de identidade) e numa volta aos nacionalismos. Estas duas tendências de fundo, que podemos observar em todas as partes, expressam na realidade uma grave crise de identidade da socialdemocracia: já não tem nenhum projeto específico. Assim que a vitoria do liberalismo nestes últimos 15 anos não foi somente econômica; foi também e, sobretudo, ideológica e cultural.

A esquerda já não tem nem conceitos, nem métodos, nem visão para entender o mundo e atuar. Tem cada vez mais dificuldades para se diferenciar qualitativamente da direita. Ademais, esta falta de projeto não pode ser mascarada por uma retórica de defesa dos "valores". Porque se a esquerda segue acreditando nos seus "valores" (de solidariedade, igualdade, liberdade e tolerância), também sabemos há muito tempo que os invoca tanto mais facilmente na oposição quanto que, muitas vezes, se esquece deles quando está no governo.

Os partidos socialistas estão enfrentados deste modo a um dilema trágico: ou inventam um novo programa ou perecerão lentamente. O que fazer diante da crise da mundialização liberal? O que fazer diante do rechaço de que é objeto a Europa liberal? O que fazer diante do ceticismo e do distanciamento das classes populares e médias? O projeto de um novo ‘Welfare State’ europeu, mais necessário que nunca, depende das respostas que os partidos socialistas sejam capazes de dar a estas perguntas.

Sami Naïr é Professor da Universidade Pablo de Olavide de Sevilha, Espanha. Tradução ao castelhano de M. Sampons.