quarta-feira, junho 23, 2010

As profecias de Mapplethorpe


As profecias de Mapplethorpe

RAFA CERVERA – El País - Babelia – 19/06/2010

Tradução de Antonio de Freitas Jr.

Patti Smith, antiga e eterna companheira do fotógrafo, escreve as memórias de ambos desde que se conheceram em Nova York nos anos sessenta e que o artista lhe encarregou pouco antes de morrer. O livro, que acaba de ser publicado na Espanha, é um relato comovedor do afã de uns seres dispostos a pôr suas almas a serviço da arte, inspirados por Rimbaud, Dylan, Genet e outros nomes idolatrados.

‘Nada está terminado até que tu o vejas’, lhe dizia Robert Mapplethorpe a Patti Smith quando, esperando sua opinião, ele lhe mostrava aquelas que então eram as suas primeiras fotos. Ambos eram essas crianças a que alude o título, dois talentos tentando florescer na Nova York de finais dos anos sessenta, lutando quase com desesperação por plasmar sua arte e obter um reconhecimento que ninguém se atreveria a negar-lhes hoje. Essa Nova York boêmia, com o hotel Chelsea, o Max's Kansas City, St. Mark's Place e a galáxia Warhol como pontos cardinais, é o cenário pelo qual transcorre este deslumbrante texto biográfico. Através de suas páginas, Smith rende homenagem ao que foi seu amante, cúmplice e, acima de tudo, alma gêmea. ‘Éramos unos niños’ (‘Éramos umas crianças’, em português) conta esse trajeto vital, tomando a estreita relação entre Mapplethorpe e a narradora coprotagonista como nó. Mortos de fome e também cheios de ambição, se apoiaram mutuamente para encontrar seus próprios caminhos artísticos. Assim, descobrimos como Mapplethorpe falava insistentemente a Smith de seu potencial como cantora de ‘rock & roll’; de sua parte, foi ela que o convenceu a abandonar as ‘collages’ e começar a tomar suas próprias fotografias. Os desencontros -motivados em muitos casos pela progressiva imersão do fotógrafo no submundo gay que alimentou o lado mais chocante de seu trabalho- estremeceram em ocasiões a relação. A prosa de Smith é firme, não se deixa levar por rancores nem sentimentalismos, e cumpre de maneira formidável o objetivo buscado: falar do lado humano de um artista que foi polêmico e que em mais de uma ocasião se viu estrangulado pela natureza de sua própria obra. "Robert elevou aspectos da experiência masculina", explica Smith, "imbuindo à homossexualidade de misticismo. Como disse Cocteau de Genet, sua obscenidade nunca é obscena".

A necessidade de escrever sobre seu antigo, ainda que em realidade eterno, companheiro chegou quase no mesmo instante em que tocou o telefone da casa da família Smith e Edward Mapplethorpe comunicou o falecimento de seu irmão, em uma fria manhã de março de 1989. Com uma voz tão poderosa como a que brota de seus poemas e canções, Smith nos mostra esse itinerário compartido, recheado de piadas e salpicado por personagens tão únicos como o momento histórico - que vai de 1967 a 1978 - no qual se desenvolve o núcleo do texto. As noites no quarto detrás do Max's Kansas City, onde o apolíneo Mapplethorpe é desejado pela corte de Warhol, ao mesmo tempo em que a andrógina Smith é completamente ignorada, até que decide cortar o cabelo à Keith Richards e consegue captar a caprichosa atenção dos ilustres paroquianos. Os encontros com Corso, que citando a Mallarmé assegura que os poetas não terminam os poemas, os abandonam; e com Ginsberg, que tentou ficar com ela ao confundi-la com um rapaz enquanto ela se morria de fome diante de um sanduíche que não podia pagar. Um encontro com uma desolada Janis Joplin à que Smith lisonjeia chamando-a "pérola" (‘pearl’, em inglês), palavra que se converterá no título do álbum póstumo da texana. Porém, acima destas e de outras piadas, ‘Éramos unos niños’ é também o sólido e emotivo relato da relação simbiótica entre dois personagens que não pareciam estar completos sem o outro. E nos mostra o comovedor afã de uns seres dispostos a pôr suas almas a serviço da arte, aferrados a seus respectivos sonhos, inspirados por Rimbaud, Dylan, Genet e outros nomes idolatrados.

Smith conta como se alternavam para entrar nas exposições de museus que lhes interessavam, porque o dinheiro não dava para duas entradas. Em uma ocasião, quando ela, maravilhada, se dispunha a narrar-lhe as obras que havia visto, ele cortou-a dizendo: "Algum dia entraremos juntos para ver as exposições e, ademais, a obra exposta será nossa". Nenhum dos dois imaginava então que suas vidas se converteriam em existências lendárias, uma historia digna não somente de ser contada, mas também de ser admirada. Uma apaixonada e apaixonante odisséia vivida em uma época na qual comprometer-se com a própria necessidade era quase um ato heróico. Consciente, talvez, de que aqueles dias que intercambiaram suas energias formam também parte de sua obra, pouco antes de falecer Mapplethorpe pediu a Smith que escrevesse a historia de ambos. Agora, aquela velha frase, ‘nada está terminado até que tu o vejas’, se revela como algo profético. Porque a historia foi contada através do olhar e do verbo da única pessoa capaz de elevá-la ao nível que merece.