Falece aos 87 anos José Saramago
O escritor foi o primeiro Prêmio Nobel (1998) em língua portuguesa
JUAN CRUZ / JAVIER RODRÍGUEZ MARCOS – El País
Madrid - 18/06/2010
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
O escritor português e Prêmio Nobel José Saramago morreu ao redor das nove horas da manhã de hoje, hora de Brasília, aos 87 anos em sua residência na localidade de Tías (Lanzarote/Ilhas Canárias/Espanha). O autor de ‘A Jangada de Pedra’ foi poeta antes de ser romancista de sucesso e antes de ser poeta, foi pobre. Unido o jornalismo a estes outros três fatores (pobreza, poesia e romance) se entenderá a fusão entre preocupação social e exigência estética que marcou a obra do único Prêmio Nobel da língua portuguesa até hoje. Em 1998, o maior prêmio literário do planeta reconheceu um filho de camponeses sem terra, nascido em 1922 em Azinhaga, Ribatejo, a 100 quilômetros de Lisboa. Tinha três anos quando sua família emigrou para a capital, onde as penúrias rurais apenas se transformaram em penúrias urbanas. Assim, o futuro escritor formou-se na biblioteca pública de seu bairro enquanto trabalhava numa oficina, após abandonar a escola para ajudar a manter uma casa na qual já faltava seu irmão Francisco, dois anos mais velho que ele e morto logo depois da mudança.
‘As pequenas memórias’ (editadas em Espanha por Alfaguara, como todo o resto de sua obra desde que abandonou Seix Barral) é o título que Saramago pôs no relato de uma infância que sempre teve um pé na aldeia de onde havia emigrado. Seu romance ‘Levantado do Chão’ (1980) conta as peripécias de varias gerações de camponeses do Alentejo. Não foi seu primeiro romance, mas aquele que representou sua primeira consagração depois que ‘Manual de Pintura e Caligrafia’ rompera em 1977 um silêncio de quase 30 anos. Eram os anos que havia passado desde a aparição de ‘Terra do Pecado’, sua verdadeira, ainda que de pouco sucesso, estréia como romancista. Nessas três décadas Saramago trabalhou como administrador, empregado de seguradora e de uma editora; havia se casado e divorciado de sua primeira esposa, publicado três livros de poemas, ingressado no Partido Comunista -clandestino durante a ditadura de Salazar- e, acima de tudo, se consagrado como jornalista.
‘Levantando do Chão’ foi seguido por ‘Memorial do Convento’, em 1982, e dois anos mais tarde ‘O Ano da Morte de Ricardo Reis’. Centrada na figura do heterônimo de Fernando Pessoa, o grande poeta do Portugal moderno, o romance é um intenso retrato de Lisboa da mão de um poeta imaginário que, da mesma maneira que passou nove meses no ventre materno, há de passar um tempo equivalente desde a morte do homem que o criou antes de desaparecer definitivamente. A fama internacional chegou a Saramago precisamente com este romance escrito com uma rara intensidade poética no qual demonstra haver assimilado todas as lições da narrativa moderna. Numa conferencia pronunciada por esses anos 80 recordava o conselho que ele mesmo costumava dar aos leitores que diziam não entender bem seus livros por causa das misturas de vozes e a ausência de marcas convencionais nos diálogos: "Leia-os em voz alta". Funcionava.
Nesse tempo, a atividade de Saramago foi frenética. Uma produtividade que lhe acompanhou até sua morte, escrevendo incansavelmente romances, diários, obras de teatro e até um blog. Após a fábula ibérica ‘A Jangada de Pedra’ (1986), na qual Espanha e Portugal se desprendem literalmente do continente europeu e se lançam a flutuar sobre o Atlântico, chegaram ‘Historia do Cerco de Lisboa’ (1989) e ‘O Evangelho Segundo Jesus Cristo’ (1991). Sua visão heterodoxa do messias cristão levantou uma política que culminou quando o governo de seu país negou-se a apresentar o livro ao Prêmio Literário Europeu. Ferido com aquele gesto, Saramago se instalou em Lanzarote, Espanha, com Pilar del Río, sua segunda esposa e nova tradutora. A mesma polêmica de cores religiosas reproduziu-se em 2009 à luz da publicação de um romance considerado ofensivo pela hierarquia católica lusa, ‘Caim’. Meses antes, o escritor viu-se metido noutro rififi. Desta vez na Itália: sua editora de sempre, propriedade de Silvio Berlusconi, negou-se a publicar ‘O Caderno’, um livro baseado no blog do escritor, que sequer continha críticas ao primeiro-ministro italiano.
A publicação em 1995 de ‘Ensaio Sobre a Cegueira’, o relato de uma epidemia que converte em cegos os habitantes de uma cidade -Fernando Meirelles o levou ao cinema em 2008 com Julianne Moore como protagonista - abriu uma nova etapa na obra de José Saramago. Romances como ‘A Caverna’, ‘O Homem Duplicado’, ‘Ensaio Sobre a Lucidez’ e ‘As Intermitências da Morte’ levam ao terreno narrativo reflexões sobre o consumo, a sociedade de massas, o sistema democrático e a idéia da morte. Muitas delas parecem nascidas de uma pergunta: "Que aconteceria se?" Se a gente votasse massivamente em branco em umas eleições, se alguém decidisse viver à margem da economia capitalista, se se encontrassem dois homens totalmente idênticos. Outra dessas perguntas era o que aconteceria se a gente deixasse de morrer. José Saramago sabia que havia coisas que somente ocorriam na imaginação crítica de um escritor de romances.