Aprofunda-se a divisão da Bolívia
O decreto que consagra as autonomias indígenas reaviva a ruptura entre os Andes e o oeste do país - O governo enaltece a quebra da ordem social
Rumo a um novo Estado
Editorial de El País – Madrid - 08/08/2009
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
O presidente boliviano Evo Morales aprovou no domingo passado um decreto para celebrar um referendo, no próximo 6 de dezembro, juntamente com as eleições presidenciais e parlamentares, para aprovar a conversão de uns 180 municípios em autonomias indígenas. Ao mesmo tempo, apresentou oficialmente o anteprojeto de marco regulatório das autonomias e da descentralização. Assim, deu um passo adiante para por em marcha um dos desafios mais delicados da nova Constituição aprovada no referendo de janeiro deste ano com mais de 60% de votos favoráveis, ou seja, o de transformar o país num Estado plurinacional com um amplo regime de autonomias e descentralização.
A iniciativa de Morales foi rapidamente contestada pela oposição por uma questão de procedimento, já que a Constituição estabelece no capítulo sétimo que trata da Autonomia Indígena Originária Camponesa que o marco regulatório em questão deve ser discutido pela Assembléia Legislativa que será eleito em dezembro. Morales, ao convocar uma consulta sobre a conversão de municípios em autonomias indígenas para esse mesmo dia, estaria assim violando as regras do jogo, adiantando-se ao que deveria ser discutido no Parlamento ao forçar a aprovação de suas iniciativas através de consultas plebiscitárias.
Desde que, em 1992, os povos indígenas do norte e do oeste da Bolívia iniciaram uma dramática marcha para reclamar seu direito de serem levados em conta, as coisas mudaram e suas reivindicações já chegaram à Constituição. Autonomia é a palavra chave para essas comunidades. O verdadeiramente complexo é articular num marco legal viável a autonomia que reclamam as províncias rebeldes (Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija), e que tem a ver, sobretudo, com uma descentralização na tomada de decisões econômicas, com as autonomias que defendem os indígenas, em temas como a recuperação do controle perdido sobre suas possessões territoriais, além da defesa de questões de identidade (língua, democracia comunitária) e gestão dos recursos.
O decreto que consagra as autonomias indígenas reaviva a ruptura entre os Andes e o oeste do país - O governo enaltece a quebra da ordem social
MABEL AZCUI - La Paz – El País - 08/08/2009
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
O presidente boliviano Evo Morales voltou a agitar a caixa de maribondos boliviana com um decreto que abre a porta às autonomias indígenas. Para alguns é uma jogada eleitoral para assegurar sua reeleição, para outros só um disparate e para os demais um ato de justiça histórica. Para o governo Evo Morales, o processo autonômico está destinado a "romper o monopólio do poder político das elites, especialmente das terras baixas [o oeste rico em petróleo e gás: Pando, Beni, Santa Cruz e Tarija] e complementar a luta pelos territórios indígenas, que representa a ruptura do monopólio do poder econômico", nas palavras do Ministro de Autonomia, Carlos Romero, incentivador do decreto.
"É a expulsão das estruturas do colonialismo interno, a ruptura do poder econômico, do poder político e a ruptura do poder cultural", diz Romero. "Declaramos a autonomia indígena para romper definitivamente as cadeias de submissão aos poderes políticos, culturais e coloniais". Morales se adiantou seis meses à data prevista para promulgar o decreto de autonomia, que se esperava para o próximo 6 de dezembro, data das eleições gerais nas quais o presidente espera obter seu segundo mandato.
A autonomia indígena e camponesa é o ponto culminante da luta pela inclusão que os povos do norte e do oriente da Bolívia começaram em 1992, quando ascenderam desde as planícies aos picos andinos numa dramática caminhada. Considerou-se o despertar das maiorias indígenas que haviam permanecido até então, com esporádicas rebeliões, resignadas a viver distantes dos benefícios econômicos do Estado. Seis de cada 10 bolivianos são pobres e os camponeses jamais tiveram um salário médio anual superior aos 50 euros (ao redor de R$ 150,00) na última década do século XX.
A deterioração na vida rural do altiplano é produto, também, do minifúndio, o imperativo de herdar a propriedade de cultivo pela crença de que pertencer a um território reafirma a identidade e consolida a existência dos povos atados à ‘Pachamama’, a Mãe Terra.
A nova Constituição, aprovada no começo do ano, reconhece quatro níveis autonômicos: regional, provincial, municipal e indígena. Determina o artigo 290: a autonomia indígena "é a expressão do direito ao autogoverno como exercício da autodeterminação das nações e dos povos indígenas originários e das comunidades camponesas, cuja população compartilha território, cultura, línguas, organizações e instituições jurídicas, políticas, sociais e econômicas próprias".
As comunidades indígenas terão umas vinte competências exclusivas, referentes fundamentalmente às "formas próprias de desenvolvimento econômico, social, cultural de acordo com sua identidade e visão", ademais da atenção à infraestrutura vial, serviços de educação e saúde (água, luz e esgoto).
Para financiar as autonomias, o Estado as apoiará com recursos econômicos, independentemente dos ingressos que elas gerem por atividades de mineração, por exemplo. Ademais, Carlos Dabdoub, Secretário de Autonomia do governo de Santa Cruz, assinalou que os povos indígenas estarão isentos de pagamento de impostos por suas terras.
Os indígenas poderão formar macrocomunidades que acabem por modificar a atual divisão territorial do país, especialmente no sul. Bolívia está dividida, atualmente, em nove províncias e 327 municípios. Destes últimos, uns 180 podem ser declarados municípios autônomos indígenas, segundo o autor da Lei de Participação Popular, Carlos Hugo Molina. "A autonomia indígena possui mais competências e atribuições que a autonomia provincial; possui a gestão do território, a propriedade de recursos naturais, a aplicação de normas consuetudinárias e tem um germe de formação de novos estados a partir de formas de autodeterminação", explica o jurista.
Os povos originários são 36, com populações que vão dos três milhões de ‘quechuas’ e ‘aymarás’, a outras 34, agrupadas em 10 famílias lingüísticas, nas quais prevalece a tupi-guaraní. Algumas destas etnias têm menos de cem membros (o caso dos ‘araona’) enquanto outras podem superar os 60.000 (os ‘chiquitanos’). A propriedade da terra implica em deter e usufruir dos recursos naturais renováveis, porém, também, o direito de veto à exploração dos recursos naturais não renováveis – petróleo e mineração.
Nos últimos meses, membros de comunidades indígenas ocuparam pelos menos umas vinte explorações mineiras concedidas pelo Estado. Confiscaram as máquinas e outros bens, além de expulsar os trabalhadores em protesto pela presença de investidores estrangeiros ou locais, mas de origem ‘criollo’. Também decidiram assumir a exploração mineira diante da passividade das autoridades. A mesma situação se deu em explorações privadas agrícolas e industriais assentadas em terrenos reclamados pelos indígenas. Os proprietários foram expulsos e confiscados seus bens, recursos, animais e maquinas.
"É a expulsão das estruturas do colonialismo interno, a ruptura do poder econômico, do poder político e a ruptura do poder cultural", diz Romero. "Declaramos a autonomia indígena para romper definitivamente as cadeias de submissão aos poderes políticos, culturais e coloniais". Morales se adiantou seis meses à data prevista para promulgar o decreto de autonomia, que se esperava para o próximo 6 de dezembro, data das eleições gerais nas quais o presidente espera obter seu segundo mandato.
A autonomia indígena e camponesa é o ponto culminante da luta pela inclusão que os povos do norte e do oriente da Bolívia começaram em 1992, quando ascenderam desde as planícies aos picos andinos numa dramática caminhada. Considerou-se o despertar das maiorias indígenas que haviam permanecido até então, com esporádicas rebeliões, resignadas a viver distantes dos benefícios econômicos do Estado. Seis de cada 10 bolivianos são pobres e os camponeses jamais tiveram um salário médio anual superior aos 50 euros (ao redor de R$ 150,00) na última década do século XX.
A deterioração na vida rural do altiplano é produto, também, do minifúndio, o imperativo de herdar a propriedade de cultivo pela crença de que pertencer a um território reafirma a identidade e consolida a existência dos povos atados à ‘Pachamama’, a Mãe Terra.
A nova Constituição, aprovada no começo do ano, reconhece quatro níveis autonômicos: regional, provincial, municipal e indígena. Determina o artigo 290: a autonomia indígena "é a expressão do direito ao autogoverno como exercício da autodeterminação das nações e dos povos indígenas originários e das comunidades camponesas, cuja população compartilha território, cultura, línguas, organizações e instituições jurídicas, políticas, sociais e econômicas próprias".
As comunidades indígenas terão umas vinte competências exclusivas, referentes fundamentalmente às "formas próprias de desenvolvimento econômico, social, cultural de acordo com sua identidade e visão", ademais da atenção à infraestrutura vial, serviços de educação e saúde (água, luz e esgoto).
Para financiar as autonomias, o Estado as apoiará com recursos econômicos, independentemente dos ingressos que elas gerem por atividades de mineração, por exemplo. Ademais, Carlos Dabdoub, Secretário de Autonomia do governo de Santa Cruz, assinalou que os povos indígenas estarão isentos de pagamento de impostos por suas terras.
Os indígenas poderão formar macrocomunidades que acabem por modificar a atual divisão territorial do país, especialmente no sul. Bolívia está dividida, atualmente, em nove províncias e 327 municípios. Destes últimos, uns 180 podem ser declarados municípios autônomos indígenas, segundo o autor da Lei de Participação Popular, Carlos Hugo Molina. "A autonomia indígena possui mais competências e atribuições que a autonomia provincial; possui a gestão do território, a propriedade de recursos naturais, a aplicação de normas consuetudinárias e tem um germe de formação de novos estados a partir de formas de autodeterminação", explica o jurista.
Os povos originários são 36, com populações que vão dos três milhões de ‘quechuas’ e ‘aymarás’, a outras 34, agrupadas em 10 famílias lingüísticas, nas quais prevalece a tupi-guaraní. Algumas destas etnias têm menos de cem membros (o caso dos ‘araona’) enquanto outras podem superar os 60.000 (os ‘chiquitanos’). A propriedade da terra implica em deter e usufruir dos recursos naturais renováveis, porém, também, o direito de veto à exploração dos recursos naturais não renováveis – petróleo e mineração.
Nos últimos meses, membros de comunidades indígenas ocuparam pelos menos umas vinte explorações mineiras concedidas pelo Estado. Confiscaram as máquinas e outros bens, além de expulsar os trabalhadores em protesto pela presença de investidores estrangeiros ou locais, mas de origem ‘criollo’. Também decidiram assumir a exploração mineira diante da passividade das autoridades. A mesma situação se deu em explorações privadas agrícolas e industriais assentadas em terrenos reclamados pelos indígenas. Os proprietários foram expulsos e confiscados seus bens, recursos, animais e maquinas.
Rumo a um novo Estado
Evo Morales inicia o processo para converter Bolívia num país com autonomias indígenas
Editorial de El País – Madrid - 08/08/2009
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
O presidente boliviano Evo Morales aprovou no domingo passado um decreto para celebrar um referendo, no próximo 6 de dezembro, juntamente com as eleições presidenciais e parlamentares, para aprovar a conversão de uns 180 municípios em autonomias indígenas. Ao mesmo tempo, apresentou oficialmente o anteprojeto de marco regulatório das autonomias e da descentralização. Assim, deu um passo adiante para por em marcha um dos desafios mais delicados da nova Constituição aprovada no referendo de janeiro deste ano com mais de 60% de votos favoráveis, ou seja, o de transformar o país num Estado plurinacional com um amplo regime de autonomias e descentralização.
A iniciativa de Morales foi rapidamente contestada pela oposição por uma questão de procedimento, já que a Constituição estabelece no capítulo sétimo que trata da Autonomia Indígena Originária Camponesa que o marco regulatório em questão deve ser discutido pela Assembléia Legislativa que será eleito em dezembro. Morales, ao convocar uma consulta sobre a conversão de municípios em autonomias indígenas para esse mesmo dia, estaria assim violando as regras do jogo, adiantando-se ao que deveria ser discutido no Parlamento ao forçar a aprovação de suas iniciativas através de consultas plebiscitárias.
Desde que, em 1992, os povos indígenas do norte e do oeste da Bolívia iniciaram uma dramática marcha para reclamar seu direito de serem levados em conta, as coisas mudaram e suas reivindicações já chegaram à Constituição. Autonomia é a palavra chave para essas comunidades. O verdadeiramente complexo é articular num marco legal viável a autonomia que reclamam as províncias rebeldes (Santa Cruz, Beni, Pando, Tarija), e que tem a ver, sobretudo, com uma descentralização na tomada de decisões econômicas, com as autonomias que defendem os indígenas, em temas como a recuperação do controle perdido sobre suas possessões territoriais, além da defesa de questões de identidade (língua, democracia comunitária) e gestão dos recursos.
O complexo desafio (talvez impossível) de articular e fazer viáveis as autonomias de distintos níveis territoriais (departamentais, regionais, municipais e indígenas) deve ser o resultado de um acordo parlamentar. Cada vez mais difícil de ser conseguido nesse clima de enorme divisão em que se enfrentam andinos e orientais.