Vinte anos depois do Muro a historia continua
MIKHAIL GORBACHEV – El País - 05/11/2009
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
Tradução de Antonio de Freitas Jr.
Vinte anos se passaram desde a queda do Muro de Berlim, um dos símbolos vergonhosos da guerra fria e da perigosa divisão do mundo em blocos e esferas de influencia enfrentadas. O período atual nos permite observar aqueles acontecimentos e a formar uma opinião menos emocional e mais racional.
A primeira observação otimista é que o anunciado ‘fim da Historia’ em absoluto não se produziu. Porém, tampouco chegou o que os políticos de minha geração confiavam sinceramente que ocorreria: um mundo no qual, com o fim da guerra fria, a humanidade pudesse finalmente esquecer a aberração da corrida armamentista, dos conflitos regionais e das estéreis disputas ideológicas e entrar numa sorte de século dourado de segurança coletiva, uso racional dos recursos, fim da pobreza e da desigualdade e restauração da harmonia com a natureza.
Outra consequência é a interdependência de importantes aspectos que têm a ver com o sentido da existência da humanidade. Esta interdependência não se dá somente entre os processos e fatos que ocorrem nos diferentes continentes, mas também no vínculo entre as mudanças nas condições econômicas, tecnológicas, sociais, demográficas e culturais de milhares de milhões de pessoas. A humanidade começou a se transformar numa civilização única.
Ao mesmo tempo, a desaparição da chamada cortina de ferro e das fronteiras justapôs não somente àqueles países que até há pouco representavam diferentes sistemas políticos, mas também a diferentes civilizações, culturas e tradições.
Os políticos do século passado podem estar orgulhosos de haver evitado o perigo de uma guerra termonuclear. Contudo, para milhões de pessoas o mundo não se converteu num lugar mais seguro que antes. Inumeráveis conflitos locais e guerras étnicas e religiosas apareceram no novo mapa da política mundial. Uma prova evidente do comportamento irracional da nova geração de políticos é o fato de que os orçamentos de defesa de muitos países, grandes ou pequenos, são agora maiores que durante a guerra fria, assim como os métodos repressivos ainda são a forma geral para resolver conflitos e um aspecto comum e corrente das atuais relações internacionais.
Desafortunadamente, ao longo das duas últimas décadas o mundo não se tornou um lugar mais justo: as disparidades entre a pobreza e a riqueza inclusive se incrementaram, não somente nos países em desenvolvimento, mas também dentro das próprias nações desenvolvidas. Os problemas sociais da Rússia, como em outros países pós-comunistas, são uma prova de que o simples abandono de um modelo defeituoso de economia centralizada e de planificação burocrática não é suficiente para garantir tanto a competitividade do país numa economia globalizada, como o respeito pelos princípios da justiça social.
Devem-se acrescentar novos desafios. Um é o terrorismo, convertido na "bomba atômica dos pobres", não somente em sentido figurado, mas em sentido literal. A incontrolada proliferação das armas de destruição massiva, a competição entre os antigos adversários da guerra fria para alcançar novos níveis tecnológicos na produção de armas e a urgência de novos pretendentes em desempenhar um papel protagonista num mundo multipolar incrementa a sensação de caos que está afligindo à política global.
A verdadeira conquista que podemos celebrar é o fato de que o século XX marcou o fim das ideologias totalitárias, em particular as inspiradas em crenças utópicas. Porém, rápido tornou-se evidente que também o capitalismo ocidental, privado de seu velho adversário histórico e imaginando-se a si mesmo como o indiscutível ganhador histórico e a encarnação do progresso global podem conduzir a sociedade ocidental e o resto do mundo a um novo e abominável beco sem saída.
Neste quadro, a erupção da atual crise econômica revelou os defeitos orgânicos do presente modelo ocidental de desenvolvimento imposto ao resto do mundo como o único possível. Assim mesmo, demonstra que não somente o socialismo burocrático, mas também o capitalismo ultraliberal tem a necessidade de uma profunda reforma democrática e da aquisição de um rosto humano, uma sorte de ‘Perestróica’ própria.
Hoje em dia, enquanto deixamos para trás as ruínas da velha ordem, podemos pensar em nós mesmos como ativos participantes do processo de criação de um mundo novo. Muitas verdades e postulados considerados indiscutíveis (tanto no Leste como no Oeste) deixaram de sê-lo. Entre eles estavam a fé cega no todo poderoso mercado e, sobretudo, em sua natureza democrática. Havia uma arraigada crença de que o modelo ocidental de democracia podia ser difundido mecanicamente em outras sociedades cujas experiências históricas e tradições culturais fossem diferentes. Na situação presente, inclusive um conceito como o de progresso social, que parece ser compartilhado por todos, necessita uma informação mais precisa e uma redefinição.
Mikhail Gorbachev, líder da União Soviética no período 1985/1991, é Premio Nobel da Paz 1990 e presidente do World Political Forum (WPF). © IPS (Inter Press Service).
A primeira observação otimista é que o anunciado ‘fim da Historia’ em absoluto não se produziu. Porém, tampouco chegou o que os políticos de minha geração confiavam sinceramente que ocorreria: um mundo no qual, com o fim da guerra fria, a humanidade pudesse finalmente esquecer a aberração da corrida armamentista, dos conflitos regionais e das estéreis disputas ideológicas e entrar numa sorte de século dourado de segurança coletiva, uso racional dos recursos, fim da pobreza e da desigualdade e restauração da harmonia com a natureza.
Outra consequência é a interdependência de importantes aspectos que têm a ver com o sentido da existência da humanidade. Esta interdependência não se dá somente entre os processos e fatos que ocorrem nos diferentes continentes, mas também no vínculo entre as mudanças nas condições econômicas, tecnológicas, sociais, demográficas e culturais de milhares de milhões de pessoas. A humanidade começou a se transformar numa civilização única.
Ao mesmo tempo, a desaparição da chamada cortina de ferro e das fronteiras justapôs não somente àqueles países que até há pouco representavam diferentes sistemas políticos, mas também a diferentes civilizações, culturas e tradições.
Os políticos do século passado podem estar orgulhosos de haver evitado o perigo de uma guerra termonuclear. Contudo, para milhões de pessoas o mundo não se converteu num lugar mais seguro que antes. Inumeráveis conflitos locais e guerras étnicas e religiosas apareceram no novo mapa da política mundial. Uma prova evidente do comportamento irracional da nova geração de políticos é o fato de que os orçamentos de defesa de muitos países, grandes ou pequenos, são agora maiores que durante a guerra fria, assim como os métodos repressivos ainda são a forma geral para resolver conflitos e um aspecto comum e corrente das atuais relações internacionais.
Desafortunadamente, ao longo das duas últimas décadas o mundo não se tornou um lugar mais justo: as disparidades entre a pobreza e a riqueza inclusive se incrementaram, não somente nos países em desenvolvimento, mas também dentro das próprias nações desenvolvidas. Os problemas sociais da Rússia, como em outros países pós-comunistas, são uma prova de que o simples abandono de um modelo defeituoso de economia centralizada e de planificação burocrática não é suficiente para garantir tanto a competitividade do país numa economia globalizada, como o respeito pelos princípios da justiça social.
Devem-se acrescentar novos desafios. Um é o terrorismo, convertido na "bomba atômica dos pobres", não somente em sentido figurado, mas em sentido literal. A incontrolada proliferação das armas de destruição massiva, a competição entre os antigos adversários da guerra fria para alcançar novos níveis tecnológicos na produção de armas e a urgência de novos pretendentes em desempenhar um papel protagonista num mundo multipolar incrementa a sensação de caos que está afligindo à política global.
A verdadeira conquista que podemos celebrar é o fato de que o século XX marcou o fim das ideologias totalitárias, em particular as inspiradas em crenças utópicas. Porém, rápido tornou-se evidente que também o capitalismo ocidental, privado de seu velho adversário histórico e imaginando-se a si mesmo como o indiscutível ganhador histórico e a encarnação do progresso global podem conduzir a sociedade ocidental e o resto do mundo a um novo e abominável beco sem saída.
Neste quadro, a erupção da atual crise econômica revelou os defeitos orgânicos do presente modelo ocidental de desenvolvimento imposto ao resto do mundo como o único possível. Assim mesmo, demonstra que não somente o socialismo burocrático, mas também o capitalismo ultraliberal tem a necessidade de uma profunda reforma democrática e da aquisição de um rosto humano, uma sorte de ‘Perestróica’ própria.
Hoje em dia, enquanto deixamos para trás as ruínas da velha ordem, podemos pensar em nós mesmos como ativos participantes do processo de criação de um mundo novo. Muitas verdades e postulados considerados indiscutíveis (tanto no Leste como no Oeste) deixaram de sê-lo. Entre eles estavam a fé cega no todo poderoso mercado e, sobretudo, em sua natureza democrática. Havia uma arraigada crença de que o modelo ocidental de democracia podia ser difundido mecanicamente em outras sociedades cujas experiências históricas e tradições culturais fossem diferentes. Na situação presente, inclusive um conceito como o de progresso social, que parece ser compartilhado por todos, necessita uma informação mais precisa e uma redefinição.
Mikhail Gorbachev, líder da União Soviética no período 1985/1991, é Premio Nobel da Paz 1990 e presidente do World Political Forum (WPF). © IPS (Inter Press Service).