sexta-feira, setembro 03, 2010

Borges, por suas próprias palavras


Borges, por suas próprias palavras,
agradecendo o Prêmio Cervantes, em 1980

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Tradução de Antonio de Freitas

Majestades,

Senhoras e senhores,

O destino do escritor é estranho, mas todos os destinos o são; o destino do escritor é cursar o comum das virtudes humanas, as agonias, as luzes; sentir intensamente cada instante de sua vida e, como queria Wolser, ser não somente ator, mas também espectador de sua vida. Também tem que recordar o passado, tem que ler os clássicos, já que o que um homem pode fazer não é nada, podemos simplesmente modificar muito levemente a tradição; a linguagem é nossa tradição. O escritor tem uma desvantagem: o fato de ter que operar com palavras, e as palavras, como se sabe, são uma matéria efêmera.

As palavras, como Horacio não ignorava, mudam de conotação emocional, de sentido; porém o escritor tem que se resignar a este manejo, o escritor tem que sentir, e logo sonhar, logo deixar que lhe cheguem as fábulas; convêm que o escritor não intervenha demasiado em sua obra, deve ser passivo, deve ser hospitaleiro com o que lhe chega e deve trabalhar essa matéria dos sonhos, deve escrever e publicar, como dizia Alfonso Reyes, para não passar a vida corrigindo os rascunhos, e assim trabalha durante anos, e se sente sozinho, vivo numa sorte de sonho; porém se os astros são favoráveis, uso deliberadamente as metáforas astrológicas, ainda que deteste a astrologia, chega um momento no qual descobre que não está sozinho. Nesse momento que lhe chega, que lhe chega agora, descobre que está no centro de um vasto círculo de amigos, conhecidos e desconhecidos, de gente que leu sua obra e que a enriqueceu, e nesse momento ele sente que sua vida foi justificada.

Eu agora me sinto mais que justificado, me chega este prêmio, que leva o nome, o máximo nome de Miguel de Cervantes, e recordo a primeira vez que li o Quixote, ali pelos anos de 1908 ou 1907, e creio que senti, naquele momento, o fato de que, apesar do titulo enganoso, o herói não é dom Quixote, o herói é aquele fidalgo manchego, o senhor provinciano que diríamos agora, que à força de ler a matéria da Bretanha, a matéria da França, a matéria de Roma, a Grande, quer ser um paladino, quer ser um Amadís de Gaula, por exemplo, ou Palmerín ou quem fosse, esse fidalgo que se impõe essa tarefa que algumas vezes consegue: ser dom Quixote, e que ao final comprova que não o é; ao final volta a ser Alonso Quijano, ou seja, que há realmente esse protagonista que costuma se esquecer, este Alonso Quijano.

Quero dizer, também, que me sinto muito comovido. Tinha preparadas muitas frases que não posso recordar agora, porém há algo que não quero esquecer, e é isto: comove-me muito o fato de receber esta honraria das mãos de um Rei, já que um Rei, como um Poeta, recebe um destino, aceita um destino e cumpre um destino e não o busca, ou seja, se trata de algo fatal, lindamente fatal, não sei como dizer minha gratidão, somente posso dizer meu incalculável agradecimento a todos vocês...

Muito obrigado.