sexta-feira, setembro 10, 2010

"Há uma demonização de Chávez"


ENTREVISTA: EDUARDO GALEANO Escritor uruguaio

"Há uma demonização de Chávez"

ÓSCAR GUTIÉRREZ – El País - Madri - 10/09/2010

Tradução de Antonio de Freitas

O relógio, para Eduardo Galeano (Montevidéu, 1940), ainda marca a hora da capital uruguaia, mesmo que o ruído que entra epela janela e atrapalha a conversa seja da ‘Puerta del Sol’ (Madri). "Desculpa se digo muitas bobagens. É o jet lag". As cinco horas que separam Madri da capital uruguaia deixam maluco o autor de ‘As veias abertas da América Latina’. O escritor visitou a Espanha para participar da
Semana da Cooperação que organiza a AECID e a agencia Inter Press Service, oportunidade que aproveita para "dar uma olhada no mundo de hoje, um mundo ao revés".
Pergunta. Vargas Llosa escreveu que ainda se considera jornalista. E você?

Resposta. Sim, mas há uma tradição que acredita que o jornalismo é um exercício que se pratica abaixo da literatura, e no alto do altar está a criação do livro. Não compartilho dessa divisão de classes. Acredito que toda mensagem escrita forma parte da literatura, inclusive os grafites dos muros. Faz tempo que, sobretudo, escrevo livros e muito poucos artigos. Mas me formei nisso e tenho a marca de fábrica. Agradeço ao jornalismo por me haver tirado da contemplação dos labirintos de meu próprio umbigo.

P. Em algumas ocasiões você cita a frase anônima: "Nos urinam e os jornais dizem que chove". Continua chovendo?

R. É um grafite que vi numa rua de Buenos Aires. Os muros são a imprensa dos pobres. Continua chovendo. Começando pela imposição de uma linguagem mentirosa. Quando chamam os mercenários de contratistas mentem; quando chamam de catástrofes naturais os desastres que o mundo sofre mentem também, porque a natureza não tem a culpa dos crimes que se cometem contra ela; se invoca à comunidade internacional e se referem a um clube de banqueiros e guerreiros que dominam o mundo.

P. Faz tempo que não escutamos que a imprensa é o quarto poder. Baixamos um degrau?

R. Não. Apenas se desenvolveu outras formas de comunicação que te devolvem a confiança que este mundo, ao contrário, é um centro de paradoxos interessante. Internet nasceu à serviço da indústria militar, e logo se converteu noutra coisa distinta. Multiplicaram-se as vozes não escutadas que soavam em cabanas de madeira. Contribuiu para o desenvolvimento de formas alternativas de comunicação. Eu sou pré-histórico e necessito que um jornal me queime as mãos, o odor da tinta e do papel. Tampouco posso ler um livro num monitor. Agrada-me muito o papel na mão, o livro que apoio contra o peito, e escuto, pondo-o junto à orelha, as palavras que transmite mesmo que às vezes parecem mortas no papel.

P. O encontro da AECID e IPS pretendia implicar aos meios num "desenvolvimento más inclusivo". Esquecemos de incluir alguém ao contar a crise?

R. Houve uma manipulação, creio que não inocente, dos grandes meios de comunicação de tal maneira que os autores da catástrofe, os banqueiros de Wall Street, terminaram em algo similar à inocência até acreditar que a culpa da crise era da Grécia. Porém, também há vozes alternativas que soam como as rádios comunitárias. Foram depreciadas e perseguidas em muitos países, porém agora encontraram seu lugar. As vozes das pessoas, sem intermediários, soam mais verdadeiras.

P. Existe uma menor implicação ideológica do jornalista?

R. Qualquer forma de apoio à diversidade das vozes humanas me parece estimulante, tenha a forma que tiver, ponha a etiqueta que pôr. Creio na diversidade da condição humana. O melhor do mundo é a quantidade de mundos que tem. Em “Espelhos - uma quase historia universal” (2008) tentei abarcar o mundo sem fazer caso das fronteiras, do mapa ou do tempo para celebrar a diversidade.

P. Os episódios de violência contra a imprensa nos anos setenta na América Latina se repetem em nossos dias. É possível livrar o jornalista da coação?

R. Há espaços de independência que é possível abrir. Na Argentina dirigi a revista cultural ‘Crisis’. Mas tive que ir embora porque a revista preferiu ficar parada e não se inclinar diante da vontade do golpe militar triunfante que implicava numa censura cada vez pior. Porém, enquanto durou foi uma experiência extraordinária. Chegamos a vender 35.000 exemplares. Para os militares havia algo de subversivo porque se dava a palavra aos que haviam nascido para ter a boca fechada. Minha experiência de vida me ensinou que todos nós temos algo a dizer aos demais, algo a fazer pelos demais, celebrado ou pelo menos perdoado. Algumas vozes ressoam e outras não. Há muitos que estão condenados ao silêncio eterno. Às vezes as vozes desconhecidas, depreciadas, ignoradas são muito mais interessantes que aquelas do poder e seus múltiples ecos.

P. Na Venezuela, Argentina, Bolívia, Equador, os governos andam às turras com os meios de comunicação...

R. As generalizações correspondem a uma visão de nossa realidade, a latinoamericana ou do sul do mundo, que o norte tem. Os fracos, cada vez que tentam se expressar ou caminhar com suas próprias pernas tornam-se perigosos. O patriotismo é legítimo no norte do mundo e no sul se converte em populismo ou, pior ainda, terrorismo. As noticias são muito manipuladas, dependem dos olhos que as veem ou do ouvido que as escuta. A greve de fome dos índios mapuches no Chile ocupa pouco ou nenhum espaço nos meios que mais influência tem, enquanto que uma greve de fome na Venezuela ou em Cuba merece a primeira página. Quem são os terroristas? São piratas os que assaltam os barcos ou os que pescam violando as leis e os limites?

P. O presidente venezuelano, Hugo Chávez, é um dos que andam brigados com a imprensa. Temos veredicto com ele?

R. Há uma demonização de Chávez. Antes Cuba era a má do filme, agora já não tanto. Mas sempre há algum mau. Sem mau, não se pode fazer um filme. E se não há gente perigosa, o que fazemos com os gastos militares? O mundo tem que se defender. O mundo tem uma economia de guerra funcionando e necessita de inimigos. Se não existem, fabrica-se. Nem sempre os diabos são diabos e os anjos, anjos. É um escândalo que hoje, cada minuto, se dediquem três milhões de dólares em gastos militares, nome artístico dos gastos criminais. E para isso se necessita de inimigos. No teatro do bem e do mal, às vezes são intercambiáveis
como passou com Sadam Husein, um santo do Ocidente que se converteu em Satanás.